Graças à distância crescente daquele 31 de março, escolas buscam abordagem menos simplista e apaixonada sobre tema
RIO — A distância cada vez maior de um fato histórico tão marcante quanto o golpe de 1964 tem permitido que professores tenham uma abordagem menos apaixonada e simplista sobre o tema. Esta é a opinião de docentes ouvidos pelo GLOBO. Para eles, no entanto, o conteúdo de livros didáticos sobre a ditadura ainda precisa melhorar, e o assunto continua sendo sensível em algumas escolas.
Para o coordenador de História do colégio Intellectus, do Rio, Monty Miranda, existe uma diferença entre as aulas que assistia como aluno e as atuais.
— Na década de 80 e 90, os professores eram, geralmente, de esquerda, e muitos foram torturados. A fala era mais apaixonada, e não tinha a menor pretensão de ser imparcial. Não se via uma crítica ao governo João Goulart ou à luta armada, por exemplo. Hoje, quando dou aula, eu aponto a trajetória dos grupos guerrilheiros demonstrando que ela não era linear. Não era um único projeto e, nos primeiros anos do regime, o objetivo não era a democracia — aponta Monty.
Para a professora de História da Universidade Federal Fluminense Samantha Quadrat, há pressão sobre alguns professores na abordagem do assunto:
— O professor é bastante vigiado por sua escolha na forma de trabalhar o tema. Não é raro que familiares de alunos apareçam nas escolas para abordar suas opções. Ao mesmo tempo, esse professor tem uma memória que algumas vezes se choca com o que a historiografia produziu. Isso gera uma relação tensa porque ele pode achar que não precisa ler tanto sobre o período porque tem a experiência do que viveu.
Samantha destaca, porém, que novos professores têm tido mais acesso a especialistas do período em seus cursos de graduação, o que reflete positivamente na qualidade de suas aulas:
— Hoje, por exemplo, no Rio de Janeiro, em todos os departamentos de História você tem especialistas no período. Isso, sem sombra de dúvida, é fundamental para os novos professores. A revisão do conteúdo atendeu as políticas públicas educacionais, como a Lei de Diretrizes de Bases e os Parâmetros Curriculares Nacionais, onde o conceito de cidadania está consagrado.
Para o diretor do Colégio Andrews, também do Rio, Pedro Flexa Ribeiro, a reflexão sobre esse período é importante pois constrói questionamentos que se relacionam com a sociedade atual:
— Os alunos possuem reflexões que trazem de casa, da mídia, e quando passam a obter mais informações passam a formar questionamentos próprios e criar uma autonomia no pensamento.
Um dos problemas apontados pelos professores é o conteúdo dos livros didáticos. Segundo Samantha Quadrat, houve uma melhora na abordagem, porém, o tema ainda é explorado de forma limitada. As páginas dos livros deixaram de ter somente textos tratando do desenvolvimento econômico que a ditadura teve e passaram a falar sobre repressão e violações do Estado:
— O governo pressionou para rever os conteúdos dos livros didáticos. Embora os mesmos ainda abordem a ditadura de maneira bastante tradicional, ou seja, vendo um linearidade que não existia, há temas como a tortura e os direitos humanos que já aparecem abertamente.
Governo produz conteúdo sobre tema
A pesquisadora Tatyana Maia vê um revisionismo nos livros didáticos mas diz que ainda enfrenta problemas. A leitura de que o golpe foi um acontecimento inevitável vai desaparecendo e a interpretação de que existiu um radicalismo, oriundo dos mais diferentes grupos, ganha destaque ao entender a conjuntura para a intervenção militar.
— Hoje, a produção de livros marxistas que pensavam o golpe como inevitável diminui. As análises apontam para questões mais conjunturais como o radicalismo presente no momento mas, quando tratam da abertura, por exemplo, ainda existe o pensamento errado de negar o terrorismo de direita no governo Geisel.
Atualmente, órgãos do governo produzem conteúdos sobre o tema para auxiliar os professores. A Secretaria de Direitos Humanos disponibiliza um acervo com depoimentos de ex-perseguidos, filmes e textos.
Na Bahia, o governo elaborou um página na internet, intitulada Memória da Ditadura Militar, em que disponibiliza artigos, filmes, músicas, fotos e outros materiais que são encaminhados para as escolas. Em uma dessas ações, o então Colégio Estadual Presidente Emilio Garrastazu Médici mudou de nome para Colégio Estadual do Carlos Marighella. A mudança ocorreu após uma eleição com a comunidade escolar para escolher um novo nome. Com 461 votos, o guerrilheiro venceu, seguido pelo geógrafo Milton Santos com 132 votos. O ex-presidente, que dava nome ao colégio, foi uma das opções de voto mas não obteve nenhum eleitor.
Além do livro didático
Com os 50 anos do golpe, colégios prepararam um calendário de atividades que fogem das aulas tradicionais. São palestras, debates, exibição de filmes e oficinas com o objetivo de mostrar aspectos do período para além de datas e políticas econômicas.
O Colégio Andrews preparou uma semana de atividades que ocorrerá durante três dias e mesclará palestras com presos políticos e oficinas ministradas pelos professores. A coordenadora Beatriz Miné afirma que existe uma preocupação em instrumentalizar o aluno e facilitar a compreensão de conceitos e que a data possibilita esta ação. O presidente do grêmio Danilo Terry concorda que ações como essa ajudam na compreensão:
— Sair da aula típica e participar de oficinas sobre a ditadura pode mudar completamente o olhar da gente.
No colégio Mopi, um projeto multidisciplinar foi elaborado para o tema. O objetivo é que os alunos pesquisem sobre questões levantadas em debates e exibições de filmes.
— Dessa forma, nós entendemos que o aluno passa a ser protagonista no seu processo de aprendizagem. Construindo e desconstruindo conceitos que muitas vezes parecem rígidos — afirma o coordenador André Chaves.
A exibição de filmes também é uma estratégia utilizada pela Escola Parque. Além disso, os professores da escola participarão de mesas que debaterão aspectos do regime.
— O aluno passa a ter uma reflexão diferente, com mais informações e pontos de vista divergentes — analisa o professor de História André Boucinhas.
O estudante Ricardo Barata concorda com o professor e vê as atividades como uma chance de ver posições diferentes sobre um mesmo período:
— Vai além do livro didático. É poder compreender o contexto e formar minha própria opinião.
Fonte: http://oglobo.globo.com/educacao/golpe-militar-ainda-gera-tensao-dentro-de-sala-de-aula-12038942
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