domingo, 6 de abril de 2014

Homens lidam com estigma ao lecionar no ensino infantil ( O GLOBO)

Professores superam preconceito dos pais contra profissionais do sexo masculino, mas eles ainda são 3% no jardim de infância

EDUARDO VANINI





O professor Luan Felipe Xavier, do Espaço de Desenvolvimento Infantil, em Coelho Neto, cercado por alunos Foto: Camilla Maia


O professor Luan Felipe Xavier, do Espaço de Desenvolvimento Infantil, em Coelho Neto, cercado por alunos Camilla Maia



















RIO - É hora do almoço no Espaço de Desenvolvimento infantil, uma unidade da rede municipal de ensino que fica em Costa Barros, Zona Norte. De uma sala colorida, sai uma fila de crianças que cantam, em direção ao refeitório: “Meu leitinho vou beber, para ficar fortinho e crescer”. A cena seria muito comum se não fosse por um personagem. Quem puxa o animado cordão de baixinhos é o professor Luan Felipe Xavier, de 21 anos. Um dos raros exemplos de homens dando aula no ensino infantil, ele também é uma prova viva de que educadores do sexo masculino também podem fazer o maior sucesso entre as crianças na escola. Luan Felipe, por exemplo, é querido de todos.
No país, entre os 443.405 profissionais contabilizados neste segmento do ensino pelo Censo da Educação Básica de 2012, apenas 13.516, ou 3%, eram homens. Enquanto alguns deles são bem aceitos em suas escolas, outros esbarram no preconceito de pais de alunos que não aceitam professores do sexo masculino dando aulas para suas crianças. Este desequilíbrio entre gêneros diminui bastante no ensino fundamental, no qual homens são 270.446 (19%) entre 1,1 milhão de docentes.
Para especialistas, por trás dessa realidade, está um velho imaginário social de que o cuidado de crianças pequenas está relacionado à maternidade e, portanto, deve ser uma tarefa para mulheres. Parte dessa tradição ganhou força ao longo da História, com a difusão das escolas normais de nível médio, em sua maioria destinadas às meninas. Hoje, com a formação de profissionais se dando pela graduação em Pedagogia, o cenário parece mudar, lentamente, graças a profissionais como Luan.
— Antes de começar a dar aulas, no ano passado, senti um pouco de medo. Tinha domínio da teoria, mas a prática ainda me assustava. Ficava pensando em como ia cantar musiquinhas com minha voz grossa e achava que, só de encostar nessas crianças, tão frágeis, poderia quebrá-las — brinca Luan, que é concursado da rede municipal e dá aula para 25 alunos de 3 anos. — Mas, na terceira semana, já estava brincando à vontade com todos. Gosto do que faço, não entrei enganado sobre as dificuldades.
Ele concluiu o Normal no Instituto de Educação Carmela Dutra e está no último período de Pedagogia na Uerj. Além do EDI, Luan dá aulas para uma turma do 4º ano do ensino fundamental do CIEP Dauta Jobert Barreto, em São João do Meriti, na Baixada Fluminense, onde também é o único homem à frente de uma classe. O estranhamento por parte dos pais não é algo raro. Mas uma boa conversa dá conta do recado. A própria diretora do EDI, Margarete Mendes, tem este cuidado.
— Não existe essa diferença profissional entre homens e mulheres. Mantemos um contato frequente com os pais, que são convidados a acompanhar de perto o cotidiano da escola. Qualquer insegurança deles é afastada depois que observam o bom trabalho executado pelo Luan em sala — justifica.
A 36 quilômetros da escola de Luan, o professor Perseu Silva, de 27 anos, ensinava, naquela mesma tarde de segunda-feira, músicas de Dorival Caymmi a sua turma de 25 alunos de 5 anos na Escola Parque, na Gávea, Zona Sul. Ele também é o único homem a lecionar para uma classe infantil no colégio. Formado em Pedagogia pela Uerj em 2009, Perseu tem especialização em educação infantil e planeja um mestrado em mídia e educação.
— Sou encantado pelo fato de lidar com 25 cabeças pensantes que se tornam diferentes a cada dia. Entrei aqui como estagiário e fui contratado como professor em 2010. Na época, pelo fato de ser o primeiro homem, a diretora disse que a gente ia aprender juntos. Hoje, as crianças me adoram. Acho que, por ser o único homem, chamo mais a atenção delas. E nunca houve um pai que pedisse para que o filho não estudasse comigo. Acontece justamente o contrário — orgulha-se ele.
‘Preocupação de conatação sexual’
Mas nem todas as famílias encaram a presença de homens na educação infantil com tranquilidade. Perseu tem vários colegas que não conseguem emprego neste segmento. É o caso do pedagogo Pedro Julio Almeida Neto, de 25 anos. Ele já passou por quatro escolas e conta que em todas sofreu algum tipo de preconceito. Em alguns casos, pais chegaram a tirar seus filhos da instituição onde ele lecionava.
— Em 2009, assumi uma turma de alfabetização, numa escola da prefeitura de Belford Roxo, onde me sentia oprimido pelos pais. Eles perguntavam se teria mais alguém em sala e se eu tinha filhos. Não era explícito, mas sentia uma preocupação de conotação sexual, pelo fato de ser homem, era um medo de que os filhos fossem molestados. Os responsáveis também procuravam defeitos em meu trabalho, reclamando do meu método de ensino e dos deveres que passava. Mas, em alguns meses, consegui conquistá-los com os resultados do meu trabalho — recorda-se.
Pedro não conseguiu se firmar na educação infantil. Atualmente, dá aulas de Inglês num colégio particular de São João do Meriti, para turmas do 6º ao 9º ano do ensino fundamental.
— Já enviei currículos a várias escolas particulares, mas sem sucesso. Em algumas, pergunto se admitem homens nas séries iniciais, e a grande maioria diz que não. As escolas particulares ainda estão muito fechadas, em parte, por medo da reação dos pais. No ensino público já é um pouco mais fácil, em função dos concursos — avalia
A gerente de comunicação Simone Ruiz é mãe das gêmeas Valentina e Maria Antônia, de 6 anos, que foram alunas de Perseu na Escola Parque. A mãe diz que não teve qualquer motivo para temer a novidade, justamente por se informar do histórico do professor.
— Ele tinha ótimas referências. Perseu soube perfeitamente dosar com afeto a proteção maternal que crianças nessa idade ainda esperam de um professor. As meninas se desenvolveram muito e encerraram o ano completamente apaixonadas por ele — avalia. — Acho que as escolas deveriam investir mais nessa diversidade. Se hoje a gente busca esse equilíbrio com pai e mãe atuando na educação dos filhos em casa, é legal que isso seja reproduzido nos colégios também.
‘Há muito preconceito’
Professor adjunto da Faculdade de Educação da Uerj e diretor da Escola Olga Mitá, Aristeu Leite é categórico ao contestar a ideia de que só mulheres podem educar e cuidar das crianças na primeira infância:
— As crianças, desde a educação infantil, precisam da figura masculina interagindo com elas. É importante que aprendam que o universo feminino não é o único existente — comenta o educador.
O professor observa que mais homens têm se interessado pela área, como é possível perceber nas próprias faculdades de Pedagogia.
— Há pouco tempo, isso era raríssimo. Formei-me em 1970 e, na época, éramos apenas dois fazendo a graduação — compara.
A mudança, entretanto, segue lenta, ainda meio emperrada pelos ecos da forte divisão sexual do trabalho ainda existente no Brasil. É o que observa a especialista Sandra Pereira Tosta, professora da Pós-graduação em Educação da PUC-Minas.
— Social e culturalmente, o que se espera é que os cuidados com a criança fiquem por conta da mulher, mãe, de preferência. É como se isso a habilitasse automaticamente para educar. Ainda há muito preconceito em relação ao homem cuidando de crianças, porque é estigmatizado como pedófilo. E o medo da pedofilia, principalmente, está muito presente na percepção da população — diz Sandra.
A professora afirma que muitos pais colocam como condição para a escola que professores homens não possam dar banho e levar crianças ao banheiro:
— É preciso mostrar que educar, e não somente cuidar, não é tarefa exclusiva da mãe, mas de quem está habilitado para educar. A identidade da educação infantil não pode ser generificada ao ponto de não ser permeável às mudanças e ao diálogo com outras possíveis identidades



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