ANTONIO GÓIS
Publicado:
- · Para Viviane Mosé, o ensino no Brasil ainda é preso a uma estrutura do passado, que trata o aluno como um decorador de conteúdos
· Ela ainda
defende que, numa sociedade em que o acesso ao conhecimento foi democratizado
em redes sociais, é preciso abandonar modelos de ensino em massa para priorizar
a educação um a um
· Viviane Mosé lança nesta semana o livro
"A escola e os desafios contemporâneos"
Qual foi seu objetivo ao escrever o livro ‘“A
escola e os desafios contemporâneos”?
Sou professora há 30 anos. Logo que entrei na universidade, já dava aula
para professores de maternal e jardim de infância, sobre psicologia do
desenvolvimento. Recentemente, visitei mais de 50 municípios, fazendo palestrar
para professores em espaços que às vezes reuniam mais de mil deles para trocar
ideias. Fiz uma série de programas sobre educação, que foi ao ar no Canal
Futura, em que abordava questões como o que é educar, o que é aprender ou de
que maneira incentivamos o ser humano a ter um tipo de cognição mais ampla.
Esta abordagem combinou com minha linha de pesquisa na Filosofia, na qual eu
faço uma crítica, que vem de Nietzsche, ao modelo lógico-racional de
pensamento, à linearidade, por achar que ela produz exclusão social, por só
aceitar o que é certo ou errado, o bem ou mal.
Hoje, vivemos numa sociedade globalizada, com novas estruturas de
comunicação em rede. Este novo modelo de sociedade em rede abre perspectiva
para um raciocínio complexo, que aceita contradição. Temos de fato a
democratização do acesso aos conteúdos. Não apenas aos dados, mas ao raciocínio
em tempo real. Antes, dizíamos que a internet havia permitido acesso aos dados,
mas que isso não tinha nada a ver com conhecimento. Hoje, o que temos nas redes
sociais é conhecimento produzido em tempo real. Para ter acesso a este
conhecimento, o que você precisa é ser aceito por um grupo que esteja
discutindo aquele tema de seu interesse. E conhecimento sempre foi sinônimo de
poder.
Não é angustiante
para um professor ter que se adaptar a esta nova sociedade, tão influenciada
por novas tecnologias de comunicação sem ter conhecimento dessas tecnologias?
Uma escola para ser contemporânea não precisa ter nenhum computador em
sala. Temos de trabalhar com o raciocínio, e não com dados. Já temos um número
de acesso à internet altíssimo, mesmo nas classes populares. Professores e
alunos já fazem uso de tecnologia em casa, eles já acessam Facebook. Não é este
o problema. A revolução da tecnologia é uma revolução da memória externa. O que
o professor tem que entender é que decorar é inútil. Até então, precisávamos
decorar para ter conteúdo. Mas, hoje, se você não lembra do conteúdo, você o
acessa pelo celular. A internet é um lugar tanto perigoso como maravilhoso.
Temos hoje é que priorizar na educação a figura do pesquisador. O
objetivo tem que ser, desde os 6 anos de idade, formar pesquisador. Desta
maneira, estaremos dando a uma criança capacidade crítica para que ela faça os
recortes corretos na rede. Se você mantém o modelo educacional em que o aluno é
passivo, ele fica vítima desta rede. Nossa memória não é mais um banco de
dados. Ela é uma memória viva, presente. Professor não ensina, é o aluno que
aprende. Isso muda as relações de poder dentro da escola. A única possibilidade
que temos para a educação é pensar no aluno pesquisador, capaz de desenvolver
soluções para este mundo que desaba, que está em crise. Neste sentido, a crise
é excepcional, pois precisamos de respostas que nos levem à transformação em
uma sociedade mais justa e sustentável.
Não é demais esperar
que o professor faça esta revolução em sala de aula tendo que seguir um
currículo ainda ultrapassado?
Isso é um mito. Nas escolas brasileiras, na maioria dos municípios, não
há currículo nem nunca houve. O que o professor geralmente faz é seguir ementas
que um professor contratado há 30 anos criou. O professor diz que segue um
currículo que, na prática, ninguém sabe o que é. Mas o fato é que o MEC, há
pelos menos 20 anos, tem uma postura muito mais aberta com relação ao
currículo. É comum ouvir que é o ministério que não permite que os professores
mudem, mas isso não é verdade.
Você em seu livro
defende que as escolas tenham autonomia para definir o currículo. Mas, ao mesmo
tempo, se as deixarmos totalmente livres para escolher o que será ensinado,
poderemos negar a crianças o aprendizado de coisas básicas, que fazem parte do
currículo mínimo, como ler e escrever bem, fazer contas...
O MEC hoje já tem os Parâmetros Curriculares Nacionais, que definem o
mínimo a ser aplicado em todas as escolas. A autonomia não é 100%, claro. Mas
meu ponto é que é possível encontrar uma maneira própria de lidar com estes
parâmetros. Fora este mínimo comum, cada escola tem que discutir com a sua
comunidade o que é prioritário para ela. Do contrário, vamos acabar trazendo
não só médicos cubanos, mas também lideranças estrangeiras para assumir postos
de comando no país. O principal problema das grandes empresas hoje não é em
contratar funcionários pequenos. O problema é não ter quem ocupe sua
presidência. Com esta educação que nos ensina a ser passivos, que precisa de
apostilas para ensinar, não vamos formar empreendedores ou lideranças.
Ao final do ensino
médio, no entanto, muitas escolas abandonam iniciativas pioneiras para preparar
seus estudantes para a prova. Como fazer essa transição sem mudar o vestibular?
De fato, o vestibular é uma prova de conteúdo. Mas já temos o Exame
Nacional do Ensino Médio (Enem), que é um exame que valoriza a competência e a
habilidade. O vestibular ainda se fundamenta na memória. Na USP, o aluno que
passa é aquele que sabe o que ninguém sabe. Mas a revolução tecnológica elimina
o vestibular porque não será mais possível este modelo de prova, já que será
inviável controlar se um candidato está fazendo a prova com uma pulseira
transparente que dá acesso à internet, por exemplo. As provas de seleção terão
que admitir o uso destas tecnologias.
O Enem, criado para
ser um modelo alternativo, não está virando justamente uma prova com aquilo que
você tanto critica nos vestibulares?
Sim. Ele está perdendo suas características originais pelas pressões que
vem sofrendo. Estão surgindo nos últimos anos questões que não correspondem ao
que ele precisa. A sociedade tem que defender o Enem original, menos
conteudista e mais voltado para a avaliação de habilidades e competências. Em
vez de querer saber o que você aprendeu, o que precisamos é avaliar o que você
sabe fazer com o que aprendeu.
Mas como fazer esta
revolução toda sem mexer na formação do professor?
De fato, a universidade hoje é o que há de pior na educação brasileira,
mas o curioso é que nós não a criticamos. O sistema universitário é horroroso,
fragmentado, feito como uma linha de montagem com centros de saber separados
uns dos outros. Temos uma instituição velha, que vive isolada e se recusa a ler
o presente. Isso é muito grave. É da universidade que saem as pessoas que vão
formar as pessoas.
Este modelo de escola
que você propõe não seria algo mais artesanal, que pode funcionar muito bem num
caso ou no outro, mas com poucos resultados quando se trata de uma educação de
massa?
Acabou a educação de massa. Não temos nem mais meios de comunicação de
massa. A pior coisa para a educação é um ensino de massa, com apostilas
preparadas para um ser humano único. Temos que ter uma escola que incentive os
alunos a descobrirem seus próprios talentos.
Mas temos mais de 30
milhões de alunos. Não é uma massa?
Não. Cada aluno estuda numa escola, numa comunidade, que tem que ter uma
gestão autônoma. Aliás, temos hoje um problema sério de gestão da educação no
país. Tanto por parte de gestores de políticas públicas, da dificuldade de
interagir com várias instâncias municipais, estaduais e federais, como por
parte da gestão de sala de aula.
Mas não coloco a culpa nos professores. A maioria deles está, sim,
interessada em fazer mudanças. O problema é que temos uma estrutura herdada do
regime militar, em que conteúdo chama-se disciplina, currículo é grade e
avaliação é prova. Tiramos, por exemplo, Sociologia do currículo para incluir
disciplinas técnicas. Como vamos querer que a população pense assim?
O nosso desafio hoje não é dar diploma, mas dar poder à população de
saber. Não adianta a classe C botar roupa bonita e comprar carro, pois será
excluída igualmente deste sistema. Interessa é que a pessoa pensa, elabora. O
desafio da escola é ser um a um. O futuro da educação é um a um, é a escola
respeitar um a um.
Temos que acreditar na nossa juventude como criadora de conteúdo, mas
estamos ensinando ainda como um país submisso, que faz com que crianças se
enquadrem numa estrutura que não é mais contemporânea. A nossa educação é
castradora, está sempre cortando a cabeça dos líderes e inteligentes. A nossa
melhor educação elimina as nossas lideranças. Este é o problema.
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