O governo e o PT difamam, mas nada fazem de concreto contra o ‘tribunal de exceção’. A estratégia do Planalto e do partido é provocar um alarido pontual
DEMÉTRIO MAGNOLI
O ESTADÃO
Marcos Valério reencontrou-se com José Dirceu e José Genoino no avião da Polícia Federal estacionado na Base Aérea da Pampulha, em Belo Horizonte. Braço esquerdo erguido, punho cerrado, o operador principal do mensalão virou-se para os fotógrafos enquanto subia as escadas da aeronave. Na sua conta do Twitter, ele também se declarou um preso político.
Não, a notícia acima não saiu em nenhum jornal — porque não aconteceu. Valério não teve o senso de humor para reproduzir o gesto das duas lideranças petistas. A Ação Penal 470 é alvo de uma curiosa narrativa emanada do PT: os implicados no esquema são “presos políticos” injustiçados, nos casos de dirigentes do partido, mas presos comuns condenados por crimes de corrupção, nos casos dos operadores financeiros do mensalão. Entretanto, essa duplicidade mais aparente, e um tanto desmoralizante, é apenas a superfície. Atrás das fotografias dos condenados de braço erguido e punho cerrado elabora-se uma segunda duplicidade de consequências danosas para as instituições democráticas.
O gesto de Dirceu e Genoino pode ser interpretado como simples compensação psicológica. Eles sabem que a mitologia política que os cerca, de combatentes pela liberdade, foi inapelavelmente destroçada pelas condenações. Quando erguem os braços e cerram os punhos, estão fabricando uma autoilusão: a ideia de que o passado se repete e, uma vez mais, um sistema opressivo persegue os justos. As imagens que geraram no dia das prisões são cenas de um filme antigo, apenas em versão de pastelão. A democracia pode viver com elas — e, também, com as patéticas opiniões dos seus protagonistas sobre a natureza do julgamento que tiveram no STF.
Contudo, o gesto farsesco de Dirceu e Genoino é mais que isso, pois faz parte de uma encenação política que envolve o PT e o governo. A rede de porta-vozes informais do PT cantou em uníssono a melodia do “julgamento político”, reverberando uma nota oficial do partido assinada por Rui Falcão. O governador do Rio Grande do Sul, Tarso Genro, um ex-presidente do PT, escreveu um artigo com a mesma acusação. Dilma Rousseff compareceu a um congresso do PCdoB e levantou-se para aplaudir a acusação contra o STF que, previsivelmente, coroou o evento. Até mesmo as autoridades têm o direito, comum a todos os cidadãos, de dissentir de decisões da mais alta corte do país. Coisa diferente, inaudita nas democracias, é a participação do governo numa campanha de difamação do tribunal supremo.
Eis a duplicidade de fundo: o governo e o PT difamam, mas nada fazem de concreto contra o “tribunal de exceção”. A estratégia do Planalto e do partido é provocar um alarido pontual, incapaz de transbordar o estreito limite das notas públicas e dos artigos de encomenda dos “companheiros de viagem”. Lá atrás, na hora das condenações originais, setores da esquerda petista quase imploraram à direção partidária por manifestações públicas de confrontação com o STF. Conseguiram unicamente meia dúzia de atos simbólicos, esvaziados, em auditórios fechados. Seguindo uma orientação de Lula, a direção do PT definiu a reeleição de Dilma Rousseff como prioridade imperiosa — e desautorizou a projetada campanha contra o tribunal, com suas perigosas repercussões eleitorais.
O jogo duplo é notório, escandaloso. Diante de um “julgamento político”, o governo de uma democracia estimularia apelos às cortes internacionais. O governo brasileiro nem sonha com uma iniciativa desse tipo, acalentada apenas pelos próprios advogados dos condenados. Perseguidos por um “tribunal de exceção”, os dirigentes petistas condenados procurariam obter asilo político junto a governos amigos, na Venezuela, no Equador ou em Cuba. O PT, porém, indicou que eles deveriam se entregar — e abandonou à própria sorte o operador secundário na sua aventura solitária de fuga para a Itália. O ruído deve se esgotar em si mesmo, deixando no seu rastro uma desmoralização ainda maior dos intelectuais públicos que se prestam ao papel de fusíveis de crise.
O alarido verbal atende a táticas jurídicas prosaicas e expressa cálculos políticos específicos, mas também reflete motivações de fundo. Num plano prático, serve para pressionar o STF a executar as penas dos condenados célebres em regimes mais brandos, como a prisão domiciliar. Na esfera do jogo político, funciona como um prêmio de consolação para a esquerda petista e, ainda, como um expediente destinado a dourar a biografia partidária. Contudo, no universo ideológico, evidencia a dupla alma do lulopetismo, que obteve seus maiores triunfos graças à democracia, mas continua a desconfiar de um sistema apoiado no princípio do pluralismo.
Nos tempos de João Goulart, o governo acusava o Congresso de representar os interesses das elites e impedir o avanço das “reformas de base”. As palavras converteram-se em atos, originando manifestações públicas oficialistas contra o Poder Legislativo — e a turbulência resultante serviu como pretexto para a ruptura da ordem democrática. O lulopetismo segue trajetória similar, apenas substituindo o Congresso pelo STF, mas, prudentemente, circunscreve suas ações ao palco da retórica. Lula enviou aos companheiros condenados uma decepcionante mensagem de solidariedade e anuncia que falará coisas extraordinárias tão logo se conclua todo o julgamento. Enquanto isso, por trás do pano, sopra aos dirigentes petistas o recado de que nada deve atrapalhar a marcha normal da campanha da reeleição.
Melhor assim, claro. Entretanto, sempre é bom lembrar que as palavras — e os gestos — têm sentido. As imagens de Dirceu e Genoino de braço erguido e punho cerrado valem tanto quanto a imagem faltante, de um Valério espirituoso na mesma postura. O governo é outra coisa: quando as autoridades desafiam a legitimidade do STF, estão dizendo que a democracia não passa de uma ferramenta descartável
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