Redações também apresentam graves desvios de concordância
LAURO NETO
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RIO — “Rasoavel”, “enchergar”, “trousse”. Esses são alguns dos erros de grafia encontrados em redações que receberam nota 1.000 no Exame Nacional de Ensino Médio 2012 (Enem). Durante um mês, O GLOBO recebeu mais de 30 textos enviados por candidatos que atingiram a pontuação máxima, com a comprovação das notas pelo Ministério da Educação (MEC) e a confirmação pelas universidades federais em que os estudantes foram aprovados. Além desses absurdos na língua portuguesa, várias redações continham graves problemas de concordância verbal, acentuação e pontuação.
Apesar de seguirem a proposta do tema “A imigração para o Brasil no século XXI”, os textos não respeitavam a primeira das cinco competências avaliadas pelos corretores: “demonstrar domínio da norma padrão da língua escrita”. Cada competência tem a pontuação máxima de 200 pontos.
Segundo o “Guia do participante: a redação no Enem 2012”, produzido pelo MEC, os 200 pontos na competência 1 são atingidos apenas se “o participante demonstra excelente domínio da norma padrão, não apresentando ou apresentando pouquíssimos desvios gramaticais leves e de convenções da escrita. (...) Desvios mais graves, como a ausência de concordância verbal, excluem a redação da pontuação mais alta”.
O manual aponta, entre os desvios mais graves, erros de grafia, acentuação e pontuação. Na mesma redação em que figura a grafia “rasoavel”, palavras como “indivíduos”, “saúde”, “geográfica” e “necessário” aparecem sem acento. E ao menos dois períodos terminam sem o ponto final.
Em outro texto recebido pelo GLOBO, aparecem problemas de concordância verbal, como nos trechos “Essas providências, no entanto, não deve (sic) ser expulsão” e “os movimentos imigratórios para o Brasil no século XXI é (sic)”. O mesmo candidato, equivocadamente, conjuga no plural o verbo haver no sentido de existir em duas ocasiões: “É fundamental que hajam (sic) debates” e “de modo que não hajam (sic) diferenças”.
Uma terceira redação nota 1.000 apresenta a grafia “enchergar”, além de problema de concordância nominal no trecho “o movimento migratório para o Brasil advém de necessidades básicas de alguns cidadãos, e, portanto, deve ser compreendida (sic)”. Em outro texto, além da palavra “trousse”, há ausência de acento circunflexo em “recebê-los” e uso impróprio da forma “porque” na pergunta “Porém, porque (sic) essa população escolheu o Brasil?”.
Pós-doutor em Linguística Aplicada e professor da UFRJ e da Uerj, Jerônimo Rodrigues de Moraes Neto diz que essas redações não deveriam receber a pontuação máxima.
— A atribuição injusta do conceito máximo a quem não teve o mérito estimula a popularização do uso da língua portuguesa, impedindo nossos alunos de falar, ler e escrever reconhecendo suas variedades linguísticas. Além disso, provoca a formação de profissionais incapazes de se comunicar, em níveis profissional e pessoal, e de decodificar o próprio sistema da língua portuguesa — aponta Moraes Neto.
Claudio Cezar Henriques, professor titular de Língua Portuguesa do Instituto de Letras da Uerj, reitera que, ao ingressar na universidade, esses alunos terão de se ajustar às normas da língua de prestígio acadêmico se quiserem se tornar profissionais capacitados. Ele observa que a banca corretora não usa o termo “erro”, mas “desvio”, algo que, segundo ele, é “eufemismo da moda”.
— A demagogia política anda de braço dado com a demagogia linguística. É preciso lembrar que as avaliações oficiais julgam os alunos, mas também julgam o sistema de ensino. Na vida real, redações como essas jamais tirariam nota máxima, pois contêm erros que a sociedade não aceita. Afinal, pareceres, relatórios, artigos científicos, livros e matérias de jornal que contiverem esses desvios/erros colocarão em risco o emprego de revisores, pesquisadores e jornalistas, não é? — ele indaga.
Logo que o MEC liberou a consulta ao espelho da redação, em fevereiro, o site do GLOBO publicou uma reportagem pedindo que estudantes enviassem redações com nota 1.000, junto com seus comprovantes. O objetivo era expor os bons exemplos no site. Porém, ao ler as redações, a equipe percebeu erros gritantes em várias dissertações. Foram enviadas ao MEC, então, quatro delas. Para não expor os alunos, os textos foram digitados, e as informações pessoais (nome, CPF e número de inscrição), omitidas. O GLOBO perguntou se os desvios não desrespeitavam os critérios estabelecidos pelo manual do MEC, e o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anysio Teixeira (Inep) alegou que não comenta redações: “por respeito aos participantes, a vista pedagógica é dada especificamente a quem prestou o exame”.
Segundo o Inep, “uma redação nota 1.000 deve ser sempre um excelente texto, mesmo que apresente alguns desvios em cada competência avaliada. A tolerância deve-se à consideração, e isto é relevante do ponto de vista pedagógico, de ser o participante do Enem, por definição, um egresso do ensino médio, ainda em processo de letramento na transição para o nível superior”.
Sobre os critérios usados na correção da redação do Enem 2012, estabelecidos pela coordenação pedagógica do exame, a cargo de professores doutores em Linguística da Universidade de Brasília (UnB), o Inep informa que a análise do texto é feita como um todo. Segundo a nota, “um texto pode apresentar eventuais erros de grafia, mas pode ser rico em sua organização sintática, revelando um excelente domínio das estruturas da língua portuguesa”.
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