Diversos problemas da educação, como as doenças e a deserção de professores, podem ser causados pela própria estrutura da escola. Essa é a ideia que sintetiza o conceito de “abolicionismo escolar”, criado pelo pesquisador Danilo Alexandre Ferreira de Camargo, mestre pela Faculdade de Educação da USP (Universidade de São Paulo).
A escola, segundo sua análise, é uma ferramenta do Estado para gerenciar as populações urbanas – da mesma forma que o manicômio, a polícia, a prisão e o hospital, baseado no filósofo francês Michel Foucault.
Ele esclarece não ter respostas para os problemas, porém aponta que o formato da educação baseado na escola deve ser questionado. “Não tenho a solução para os problemas escolares, mas diria que devemos começar a duvidar das soluções escolares que são vendidas todos os dias com as mais diversas intenções e pelos preços mais variados”, completa.
Confira a entrevista a seguir.
UOL Educação - Como você imagina a educação sem a escola?
Camargo - A minha pergunta é: por que temos tanta dificuldade em imaginar uma educação sem escola? Por que, na maioria das vezes, imaginamos que sem escolas o nosso universo social entraria em colapso? Por que a escola se tornou esse limite cognitivo para pensarmos a educação e a própria sociedade?
UOL Educação – Quais características da escola tornam sua rotina “insuportável”, do seu ponto de vista? Isso sempre fez parte da vida escolar?
Camargo - É preciso chamar atenção para o fato de que, do século 19 ao início do século 21, nenhuma reforma educacional, teorizada ou praticada, modificou substancialmente a rotina do cotidiano escolar no que tange ao sequestro dos corpos infantis e ao controle rigoroso do espaço e do tempo a que estão submetidos todos aqueles que são escolarizados.
Apesar das aparentes modificações ao longo do tempo (da palmatória ao palmtop), a escola é uma instituição que parece conservar sua essência já há muito naturalizada: todos os dias, uma legião de crianças, dotadas de um número de matrícula, um uniforme, um caderno de notas, são confinadas por algumas (ou muitas) horas no interior de salas de aula, sob a supervisão de um professor, para que possam ocupar o tempo e aprender alguma coisa, pouco importa a variação moral dos conteúdos e das estratégias didático-metodológicas de ensino.
O que realmente está em jogo nessa reclusão diária não é tanto a aprendizagem, mas a forma pela qual é produzida uma específica forma de vida: o sujeito escolar.
No caso específico da minha investigação, tentei demonstrar que a recente “epidemia” de doenças ocupacionais é a manifestação atual desse velho problema da insuportabilidade da rotina escolar. Por que se suporta esse insuportável? Por que queremos que as pessoas que lá estão – alunos, professores, funcionários – vivenciem esse insuportável de uma maneira ética, criativa, eficiente?
UOL Educação - No Brasil, houve rejeição do projeto de lei que regulamentaria o ensino domiciliar, em 2011. A que se atribui essa decisão?
Camargo - Uma educação não escolar é um grande tabu para as nossas sociedades modernas e industriais. Isso porque a instituição escolar é vista como um espaço necessário de transição entre o universo privado da família e a esfera pública da política. Além disso, no Brasil, a escolarização massiva da população é um fenômeno recente e incompleto e, por isso mesmo, a recusa à obrigatoriedade da escola ainda é vista como uma ameaça ao desenvolvimento do Estado e à inserção dos contingentes populacionais ao sistema produtivo.
Contudo, não é difícil prever que o questionamento deste “direito à escola”, que na verdade é uma obrigação legal, tende a ser cada vez mais frequente nas próximas décadas.
UOL Educação - Quais seriam os indícios de que o sistema escolar esteja “em vias de explodir”, como você diz em sua pesquisa?
Camargo – A minha hipótese geral de trabalho era a de que os problemas clássicos do universo escolar, tais como a indisciplina, a evasão e até mesmo a violência são respostas políticas [à crise da escola].
As rachaduras da hegemonia da escola se apresentam nas tragédias que cotidianamente suspendem, ainda que temporariamente, a ordem escolar. Daí o meu interesse em estudar o fastio, a patologização e a criminalização dos professores e dos alunos. Quando o insuportável da escola não puder mais ser administrado pelas ciências do Estado algo acontecerá: talvez uma explosão, como previa Foucault, talvez apenas o desaparecimento gradual e silencioso dessa tecnologia de governo da infância.
UOL Educação - A escola, como instituição, estaria atualmente “agonizante”? Ela não estaria mais dando conta de tornar as crianças “contemporâneas de seu próprio tempo”, como você coloca?
Camargo - A queixa mais recorrente é essa: a escola está agonizante, a escola está em crise etc. Antes de qualquer coisa, é preciso reconhecer que as mazelas da escola são muito rentáveis e parecem se proliferar na mesma medida em que proliferam os diagnósticos e os prognósticos para uma possível cura.
É o grande paradoxo da estrutura escolar: criticamos quase tudo o que se passa na escola (os alunos, os professores, os conteúdos, os gestores, os políticos) e, ao mesmo tempo, desejamos mais escolas, mais professores, mais alunos, mais conteúdos e disciplinas.
Da minha perspectiva, não se trata de agonia da estrutura escolar. A ideia é exatamente o contrário. A minha questão é: será possível não mais tentar resolver os problemas da escola, mas compreender a existência da escola como um grave problema político?
UOL Educação - Essa “escola” de que fala também inclui a universidade? Que tipo de formato de educação substituiria o ensino superior?
Camargo - Se pararmos para pensar nas mudanças ocorridas na última década, sobretudo ao que se refere à produção e ao compartilhamento de informações, não é difícil imaginarmos que a vida universitária tal qual a conhecemos, como seus doutores catedráticos, seus arcaicos rituais de fala, sua estrutura de poder centralizada e sua forma específica de legitimação da nossa ordem social a partir de títulos acadêmicos, não sobreviverá até o fim deste século.
UOL Educação - Por fim, você questiona se o desaparecimento da escola não seria a “morte” do homem moderno. O fim da escola significaria também o início de um novo formato de sociedade?
Camargo - Há muito tempo especula-se sobre tal morte e ela é sempre adiada. O que gostaria de enfatizar é que ninguém pode dizer como será a sociedade sem escolas, mas acredito que num futuro não tão distantes as pessoas já não conseguirão imaginar como eram as sociedades com escolas.
E antes que me pergunte qual a solução para os impasses atuais da escola: eu diria que devemos começar a duvidar das soluções escolares que são vendidas todos os dias com as mais diversas intenções e pelos preços mais variados
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