quarta-feira, 17 de agosto de 2011

BRINCANDO NOS CAMPOS SEM SENHOR ( Daniel Piza)


Lá pela metade da excelente biografia de Schopenhauer, publicada agora pela Geração Editorial, o autor Rüdiger Safranski conta que o filósofo alemão escreveu no peitoril da janela de uma pousada em Rudolstadt, em 1813, um verso de Horácio: “Deve-se louvar uma casa que dá vista para os campos”. Quarenta anos mais tarde, seus admiradores já peregrinavam até ali para conferir a inscrição, com Schopenhauer enfim famoso. Lendo a biografia numa casinha com vista para as colinas da Serra da Mantiqueira, em Gonçalves, me ocorreram alguns pensamentos: em como as leituras de poesia e filosofia foram importantes, mais até do que os próprios romances, para eu descobrir o prazer dos livros na adolescência; em como vivemos numa era tão acelerada, de cidades cada vez mais alheias ao tempo e às exigências da reflexão; e em como no século 19 as celebridades eram filósofos, escritores e compositores e agora são atores, cantores e atletas. Quem hoje peregrina para ver um verso anotado por um filósofo vivo no quarto onde escreveu sua obra-prima?
Ele tinha apenas 25 anos quando, isolado naqueles campos, encontrou a clareira intelectual de sua vida e começou a conceber O Mundo como Vontade e Representação. O trabalho de Safranski, muito mais que a cronologia de uma existência, é mostrar o alcance e a incompreensão que ainda persistem a respeito de Schopenhauer. Ele influenciou muito Nietzsche e Freud, o que significa que influenciou muito o pensamento modernista, assim como Machado de Assis e Kafka; mas ora é visto como um pessimista, desses que não acreditam na humanidade e no futuro, ora como um romântico, exaltador dos impulsos irracionais. Safranski faz excelente trabalho comparando suas ideias com as de Kant, Rousseau (estava mais perto de Kant do que de Rousseau) e dos idealistas da mesma geração, como Fichte e Hegel (que o tratou com condescendência, como Goethe), tudo sem perder o andamento narrativo – uma técnica para poucos.
Schopenhauer não apenas relativizou o papel da razão, que em Kant se converte em moral e em Hegel num poder, mostrando que o que define o ser humano é o fato de querer, de ser um corpo carente, submetido a intuições e impulsos contraditórios; mas também criticou os que dizem que “a gente não manda nos sentimentos” ou “paixões não se explicam” e acreditam na superioridade do coração sobre a cabeça, pois prezava acima de tudo o autoconhecimento e a consciência crítica. O que é mais moderno nele, e portanto raro de encontrar até hoje na maioria das pessoas, é essa noção de que as oposições são inconciliáveis, seja numa síntese ideológica seja numa transcendência religiosa – e o que nos cabe é viver com o mínimo de ilusões, cientes apenas de que “a essência da vida é a vontade de viver”, na frase de Safranski. Dotados dessa vontade por natureza, devemos resistir à consequente inclinação de confundir desejo e realidade; devemos lutar para olhar além das aparências e das falsas novidades, escolhendo a cada instante entre desejos divergentes, em vez de seguir o caminho fácil da irresponsabilidade.
Para ele, a mente é ativa na percepção da realidade exterior, não um mero depósito de impressões, e por isso é preciso dar valor à imaginação, à empatia e à lógica, num ponto intermediário entre a arte e a ciência, no qual o prazer do conhecimento é fundamental. “A felicidade jamais foi considerada inoportuna”, disse Schopenhauer, que em sua obra final, Parerga e Paralipomena, recusa o rótulo de pessimista ao observar que são as pessoas que acham que “Nosso Senhor fez tudo da maneira mais perfeita”, duas frases que Safranski não cita. Por outro lado, consciente das dores e injustiças do mundo, que tanto vivenciou em suas relações pessoais, Schopenhauer também buscou na filosofia um consolo inatingível ao propor uma “libertação de todo o querer”, uma “renúncia” quase ascética, que ele mesmo jamais atingiu – machista e irascível como era e incapaz de ver benefícios no progresso urbano.
Deitado na rede da varanda em Gonçalves, enquanto meus filhos brincavam nos gramados, terminei o livro com a sensação de prazer cumprido, para usar a expressão de Rubem Braga; louvei a vista e tomei o carro de volta para a vida de computadores, celulares e televisões, ao mesmo tempo menos iludido e mais sereno. O único pecado é não deixar a felicidade entrar e ficar.

Acesse a mais recente crônica do  Prof. Cláudio Silva Cuidado, seu filho poderá ser mais um “meia boca”! clicando: http://profclaudiosilva.blogspot.com/2011/08/cuidado-seu-filho-podera-ser-mais-um.html.   


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