Descobrimentos morais do mestre Vargas Llosa
Escritor iniciaria há 50 anos investigação sobre a relação do indivíduo com a sociedade
13 de julho de 2012 | 17h 59
Há exatamente 50 anos, um jovem peruano, que havia
viajado a Madri para doutorar-se em literatura, ganhou o prêmio
Biblioteca Breve da editora Seix Barral com o romance que seria
publicado no ano seguinte com o título de La Ciudad y Los Perros.
Essa obra produziu um grande impacto no panorama literário da época,
não só pela destreza técnica do autor e sua habilidade para criar uma
atmosfera na qual se reconheciam os vícios das sociedades
latino-americanas, mas também porque, com ela, Vargas Llosa iniciava uma
exploração – que continuaria depois em seus outros romances – sobre a
relação do indivíduo com a sociedade, as tensões entre liberdade e
determinismo, e os dramas implícitos nas decisões morais dos indivíduos.
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Nelson Almeida/AE
Estátua de Antonio Conselheiro, protagonista de A Guerra do Fim do Mundo
Esse é o tema central de A Cidade e os Cachorros. Seus
protagonistas são um grupo de adolescentes que convivem no Colégio
Militar Leoncio Prado, envoltos num clima de despotismo e hipocrisia.
Seu grande desafio consiste em não se deixarem submeter por uma
instituição que, em lugar de educar para forjar cidadãos honestos,
inculca as marcas que fazem do Peru uma selva onde só triunfam o cínico e
o imoral.
Alberto Fernández, um adolescente de uma família burguesa de Lima,
vive com mais intensidade esse dilema. Ele tentará se rebelar cultivando
a ilusão de ser escritor, tentará oxigenar a atmosfera corrompida de
seu colégio desentranhando a verdade oculta por trás da morte misteriosa
de um de seus companheiros, mas fracassará estrepitosamente. Para o
jovem Vargas Llosa dos anos 60, as sociedade corruptas são uma armadilha
que debilitará o indivíduo até aniquilar seu espírito e submetê-lo a
sua engrenagem perversa.
Nesse romance, Vargas Llosa viu a importância capital que as
convicções e desejos do indivíduo desempenham para melhorar não somente
seu próprio destino, mas também o da sociedade. Sua crítica radical ao
machismo e ao exercício despótico do poder se baseia em que essas forças
debilitam a vontade e sufocam os desejos. Elas amolecem o indivíduo
para que ele aceite as imperfeições da realidade e se adapte a elas. O
determinismo social impõe esse pacto indesejado. Isso ocorre com Alberto
que, ao notar como as autoridades de seu colégio decretam que o
assassinato de seu companheiro foi um acidente para não manchar o nome
da instituição, termina se resignando a ser tão imoral e cínico como era
seu pai – e ocorre também com Bonifacia, a protagonista de A Casa Verde
(1966), o segundo romance de Vargas Llosa, que termina convertida em
prostituta depois de ter sido raptada por certas monjas missionárias na
Amazônia.
Bonifacia é uma menina indígena da tribo aguaruna, até que as monjas,
com a cumplicidade do Exército, a arrancam de sua comunidade e a
internam em uma missão para civilizá-la. Esse foi o primeiro golpe em um
processo de domesticação que, em vez de melhorar sua vida, a condenou à
servidão. Já não se tratava da violência legitimada pelo machismo
militar, mas sim do fanatismo das monjas que, com a pretensão de
cristianizar as meninas selvagens, as deixavam indefesas ante a vida e
prontas para seguir o rumo do servilismo e da prostituição.
Um dos personagens mais interessantes de Vargas Llosa é Zavalita, o protagonista de Conversa na Catedral
(1969), seu terceiro romance. É interessante porque ele, assim como
Alberto Fernández, percebe com nitidez os males que são inculcados nas
famílias burguesas de Lima, mas isso só aguça seu drama. Zavalita
entende perfeitamente as dinâmicas perversas da sociedade limenha; sabe,
também, que deve fazer algo, entretanto não tem nenhuma convicção,
princípio moral ou vocação que o oriente. Ao longo do romance, vemos
como ele tenta acreditar em algo, no comunismo, em Deus, na literatura,
no Apra, o partido mais antigo do Peru, mas não, Zavalita não acredita
em nada. Essa é a sua tragédia. O vazio espiritual de que padece lhe
impede de fazer algo que corrija os problemas do país ou de seu próprio
destino. Seu único recurso moral é a renúncia aos privilégios da classe
alta à qual pertence. Numa sociedade que garante o êxito econômico aos
corruptos, só o fracasso é moralmente legítimo. Por isso, Zavalita
decide levar uma vida medíocre, cheia de insatisfações e afligida por
rotinas insípidas cuja única virtude é não seguir o modelo de seus pais.
Era tudo que ele poderia fazer porque, sem fé numa causa, sem
convicções nem princípios morais, para onde dizer à sociedade que se
dirija, em nome do que lutar, a que dedicar a própria existência?
É significativo que nos anos 70 os personagens de Vargas Llosa
comecem a encontrar soluções distintas para os dilemas morais
recorrentes em seus três primeiros romances. Varguitas, por exemplo, o
protagonista de Tia Júlia e o Escrevinhador (1977), também tem
de enfrentar o autoritarismo, encarnado neste caso na figura de seu pai,
para realizar seus dois desejos loucos: casar-se com a tia Júlia, uma
mulher divorciada, 14 anos mais velha do que ele, e converter-se em
escritor. Nessa obra, pela primeira vez, Vargas Llosa abre a
possibilidade da emancipação. E isso se deve a que, tanto ele como seus
personagens, aprenderam algo: aferrando-se a uma vocação, neste caso a
literatura, ele encontra a força espiritual para enfrentar e, com sorte,
vencer os determinismos do ambiente. Varguitas o consegue, casando-se
com a tia Júlia e consagrando sua vida à literatura.
Se os personagens de Vargas Llosa começam a romper o determinismo
social, isso se deve a que o próprio autor, em princípios dos anos 70,
também sofre uma crise ideológica. Até a publicação de Conversa na Catedral,
Vargas Llosa acreditava que o socialismo era a opção ideológica mais
conveniente para a América Latina. Ele também acreditava nas virtudes da
Revolução Cubana e no efeito emancipador e purificador que esta teria
se contagiasse os outros países da região. Para Vargas Llosa, a
corrupção moral das sociedades latino-americanas só poderia ser
corrigida com uma revolução integral que alterasse por completo o
sistema de propriedade, a riqueza e a administração do poder. Mas depois
de Heberto Padilla, um poeta cubano amigo de Vargas Llosa, ter sido
encarcerado arbitrariamente por Castro em 1971 acusado de filtrar
mensagens contrarrevolucionárias em seus poemas, o escritor peruano
retirou seu apoio da Revolução Cubana. Desse momento em diante, assim
como seus personagens, ele teve que buscar novos referentes morais que
orientassem seus juízos e decisões. Todos esses insumos espirituais, ele
os encontrou no liberalismo.
Ao se submeter a essas novas ideias, Vargas Llosa viu-se obrigado a
revisar os mesmos problemas que havia abordado antes de uma ótica
diferente. Seria realmente necessária uma revolução para erradicar os
males do Peru? O indivíduo estaria realmente condenado a sucumbir sob o
peso da sociedade? Não. Tia Júlia e o Escrevinhador foi o ponto de inflexão. Vargas Llosa havia encontrado outra forma de resolver a tensão entre a liberdade e o determinismo.
Essa descoberta permitiu que o autor peruano abrisse uma nova etapa
literária. Nos anos 80, ele já não examinaria os perigos que as
ditaduras, as instituições fechadas e os pais autoritários traziam para a
individualidade, mas o inverso: os transtornos sociais que pode
acarretar um indivíduo que acredita cegamente em uma causa. Essa etapa
ele a inaugura com A Guerra do Fim do Mundo (1981), romance
ambientado no nordeste brasileiro, em que vamos encontrar personagens
que são a antítese de Zavalita: os fanáticos.
O Conselheiro, Moreira Cesar e Galileo Gall, os três
protagonistas do romance, acreditam com tanto ardor em suas verdades que
não temem lançar-se na transformação da realidade para que essa se
aproxime de suas fantasias. Contudo, o resultado dessa luta não vai ser
proveitoso. O choque dos distintos fanatismos produz o absurdo e a
hecatombe. A cega imposição de uma verdade inflexível e o risco que isso
representa para a coletividade, obcecaram Vargas Llosa nas décadas
seguintes. Aquele ato exaltado e nobre, com o qual se pretende baixar o
céu à terra, encarna o melhor e o pior do ser humano. Por um lado, sua
capacidade de imaginar mundos melhores, e, por outro, sua disposição de
matar o outro para materializá-lo. Essa era a chave para entender muitos
conflitos latino-americanos.
Vargas Llosa distingue, porém, dois tipos de fanatismo. Um nocivo, representado por personagens que, como o revolucionário de História de Mayta (1984) ou o ditador de A Festa do Bode
(2000), arrastam povos inteiros em suas fantasias e delírios; e outro
positivo, onde só se colocam em risco os destinos individuais. Esse
fanatismo é o de Mascarita, de O Falador (1987), ou o Gauguin de O Paraíso na Outra Esquina
(2003), que não busca a perfeição social, mas a perfeição artística. A
certeza inflexível e a determinação unívoca só são favoráveis e
legítimas no âmbito privado, nas artes e nas ciências, não no terreno
social. Se a convicção fanática afeta somente o indivíduo como no caso
de Mascarita, então ela não só é legítima, como pode resultar
proveitosa. No âmbito político, por sua vez, toda tentativa de impor uma
máxima a qualquer preço é um risco para a convivência. É preciso ter
convicções fortes e escalas de valores para se sobrepor ao determinismo e
ao poder, disso Vargas Llosa está convencido, mas é preciso duvidar das
próprias certezas e não calar as vozes que discordam porque sempre se
pode estar equivocado. Se a carência de princípios morais conduzirá à
apatia, como no caso de Zavalita, fiar nas próprias ideias sem
cotejá-las com a realidade cambiante conduz à contradição, como ocorre
com Roger Casement, o personagem de O Sonho do Celta (2011). Ao
aplicar o mesmo princípio moral – o colonialismo é inaceitável – ao
Congo Belga e à Irlanda, Casement passou de defensor dos direitos
humanos a exaltado nacionalista disposto a levar ao martírio os jovens
irlandeses. As crenças são nosso combustível para a ação, mas até onde
devemos ser fiéis a elas? Em que momento devemos ser flexíveis e
contrastá-las com a realidade?
A busca literária de Vargas Llosa foi também uma busca moral para
responder a essas interrogações. Foi também sua maneira de entender as
possibilidades que o indivíduo tem de viver em liberdade, de criar-se a
si mesmo a partir de sua vocação e seus desejos, e de entender quais
limites ele deve se impor para que seus anseios de mundos melhores e de
rebeldia não acabem trazendo a desgraça aos demais.
/ TRADUÇÃO DE CELSO PACIORNIK
CARLOS GRANÉS É ENSAÍSTA
Fonte: O Estadão
Leia crônicas do Prof. Cláudio Silva em : http://profclaudiosilva.blogspot.com.br/2011/10/cronicas-sobre-educacao-do-prof-claudio.html
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