Oscar Niemeyer, o pessimista que amava a vida ( O GLOBO )
O 'poeta do concreto' era um homem aberto a todas as opiniões e visões
O Globo
ARNALDO BLOCH
05.12.2012
RIO - Oscar Niemeyer era conhecido mais comumente como o homem que fez Brasília, e sua figura, por isso, ficou para sempre muito mais identificada com a capital que projetou (e o transformou num dos ícones mundiais do século que ele viveu e transpôs), do que com o Rio, a cidade em que nasceu e morou a maior parte da longa vida. Mas o carioca de Laranjeiras, nascido em 1907, era, em essência, um homem do Rio de Janeiro: descontadas suas andanças profissionais pelo mundo — que foram muitas —, viveu até seus últimos dias na cidade, e espelhou, em grande medida, em sua obra, a filiação e a fidelidade cariocas. Atestam-no as curvas que o arquiteto recolheu das linhas litorâneas e dos traços femininos, transferindo-as para a moldagem do concreto, o material escolhido para fazer a sua revolução estética dentro da arquitetura.
É comum reconhecer, na leveza de suas estruturas e na elegância de suas formas, o espírito da cidade, a musicalidade de sua fala, e ao mesmo tempo a sua grandeza, os seus horizontes, a generosidade da natureza. Mas o “poeta do concreto” — como era frequentemente chamado — herdou também do Rio a consciência de pertencer a um universo de contrastes onde impera a injustiça social, de que esse estado de coisas é uma constante universal e de que algo deve ser feito para mudá-lo, sendo essa ação o foco prioritário de todo homem justo. Tal princípio acabou por levá-lo ao engajamento político e à filiação ao Partido Comunista Brasileiro (que deixou no dia em que concluiu que a legenda afastara-se das bases do marxismo-leninismo).
O pessimista que amava a vida
Embora esta postura tenha lhe custado críticas, além de inevitáveis choques com as forças da repressão no período da ditadura militar (durante o qual voltou-se mais para o exterior, abrindo um escritório em Paris), ele manteve-se fiel a ela no correr da sua longa vida, dizendo-se comunista convicto mesmo depois da derrocada do regime na URSS e da queda do Muro de Berlim. Um dos últimos comunistas inexoráveis do Brasil, portanto, Niemeyer debatia até a exaustão, cada vez que era questionado, temas espinhosos como as arbitrariedades de Stálin, relativizando a visão ocidental do líder russo, e rechaçando a condenação de seu legado.
Mas, apesar do aparente sectarismo, Niemeyer era um homem aberto a todas as opiniões e visões, de maneira que, ao final de uma boa conversa com ele, o interlocutor saía com a sensação de ter conhecido, acima de qualquer coisa, um humanista, amante da liberdade, da pluralidade, do entendimento e da moderação na busca de soluções.
Homem que, ao descrever os processos de seu ofício, desdenhava da técnica e preferia mencionar a leitura de obras literárias e de filosofia como alicerces mais importantes que a própria formação. “Minha lição para a arquitetura é ler romance, poesia, ficcão, Simenon, e nada de livro técnico. A maioria dos meus projetos é resolvida pelo texto. Ler filósofos como Heidegger que dizia: a razão é inimiga da imaginação”, defendia o arquiteto, que mantinha, semanalmente, em seu escritório em Copacabana, grupos de estudo.
Nesta linha, abria-se um vão para os paradoxos de Niemeyer, um pessimista que nunca perdia a esperança num mundo melhor, esclarecendo, com conhecimento de causa, que o pessimismo, ao contrário do niilismo, não exclui o prazer e a alegria de viver; um homem que, de estatura baixa, de aparência frágil, revelava-se monumental em sua personalidade e carisma, e que, mesmo na velhice, punha-se de pé diante da prancheta; um ateu decidido, capaz de traduzir a presença divina na força da luz dentro de uma catedral, e que acreditava na natureza como uma força maior; um comunista que gostava de futebol (chegou a jogar como atacante pelo Fluminense), torcia pelo Brasil, comprava pacotes de pay-per-view e tinha na sensualidade feminina fonte de inspiração.
Um homem cuja mente ia da razão e da lógica ao mais desvairado vôo poético, e que fugiu das imposições da funcionalidade radical e das linhas retas, e construiu um novo mundo de estruturas e formas; um arquiteto que, apesar de ter dedicado sua vida ao trabalho e conquistado sucesso inquestionável (dele, André Malraux dizia ser “o maior arquiteto da Terra”, e, das colunas do Palácio Alvorada, que eram “o elemento arquitetônico mais importante desde as colunas gregas”), relativizava o peso dos louros da profissão, dizendo, de várias formas, como variações sobre um mesmo tema: “Importante não é a arquitetura. Importante é a vida. A arquitetura não pode mudar a vida. Só a vida é que pode mudar a arquitetura. No dia em que o mundo for mais justo, a arquitetura vai mudar, e será mais simples, como o mundo. Enquanto isso não acontecer, a gente vai fazendo o que é possível, embelezando as coisas, tentando surpreender, espantar, chamar a atenção para algo.”
Entretanto, Niemeyer, sempre que encontrou uma brecha, procurou um caminho que permitisse convergências entre a preocupação estética e a função social que tanto o preocupava. São exemplos os projetos do Sambódromo e dos Cieps (no caso, enquadrados num programa político de educação pública de Darcy Ribeiro e Leonel Brizola). Mais recentemente, um conjunto de prédios em Duque de Caxias, no Estado do Rio, com pórticos, biblioteca e teatro, foi projetado com a intenção de “aplicar” uma sofisticação de Zona Sul a um município onde a pobreza é dominante. “Partir do princípio de que a arquitetura dos pobres tem que ser necessariamente pobre num ambiente de contrastes é uma forma de discriminá-los, de não sinalizar para a mudança”, disse, sobre o projeto, o arquiteto que projetou uma casa para o próprio motorista, morador da Rocinha.
A inquietação de Niemeyer com o aspecto social criou, em outras obras suas, um universo simbólico forte que aparece em trabalhos como o Memorial JK, em Brasília (que contém alusão à foice e ao martelo, símbolo comunista) e na mão aberta de concreto sobre a qual escorre sangue, no Memorial da América Latina, em São Paulo, que remete ao sofrimento dos povos da região.
O medo e a coragem de voar alto
Morador um dia da exuberante Casa das Canoas, em São Conrado, e, até hoje, de um apartamento de Ipanema, Niemeyer nunca gostou de sair do Rio de Janeiro e, como Tom Jobim, tinha medo de avião. Viajava, sempre que podia, de automóvel, e percorria distâncias intercontinentais de navio, até render-se à praticidade das aeronaves. Mas, como o maestro que deu novo nome ao Galeão, o mestre das formas acabou se tornando um viajante consumado, por dever do ofício, pelas solicitações do mundo, tendo espraiado parte de suas mais de 500 obras e outras centenas de projetos por países como França, Itália, Portugal, Argélia e Israel.
Apesar do indiscutível reconhecimento internacional, Niemeyer era criticado por uma forte corrente, que acusava-o de negligenciar a funcionalidade do espaço interno da obra em benefício de preocupações estéticas. O mestre defendia-se, dizendo que tinha em conta um conjunto de fatores que começava com a vocação e especificidade de cada terreno, passava pelas necessidades de quem vai habitar o prédio (o caso da função da luz na Catedral de Brasília é veemente exemplo) e terminava na necessidade de destacar-se, de chamar a atenção, e de transformar. Em relação à casa que construiu para si na Estrada das Canoas, por exemplo, Walter Gropius disse que era muito bonita mas não multiplicável. Niemeyer respondeu: “Como tornar multiplicável uma casa que se adapta tão bem às inclinações irregulares do terreno, a uma situação única, que não pode ser encontrada em outro lugar?”
O enigma, irrespondível, é expressão clara do gênio de um grande mestre.
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