Vencedores do Pulitzer com livro sobre Pollock, Steven Naifeh e Gregory Smith lançam no Brasil livro que defende que o artista foi assassinado
07.12.12
AUDREY FURLANETTO
O Globo
RIO - Em 27 de julho de 1890, Vincent Van Gogh havia saído da Estalagem Ravoux, em Auvers, ao norte de Paris, para pintar campos de trigo. No caminho, encontrou René e Gaston Secrétan. De família burguesa, a dupla pagava ao artista bebidas e mulheres. Embora possa soar amistosa, a relação com o pintor era turbulenta. René costumava se divertir trocando o açúcar por sal nos cafés que servia a Vincent. Certa vez, passou pimenta num dos pincéis que o artista, como que para pensar melhor, costumava levar à boca.
E René tinha um revólver.
Naquele dia, Van Gogh voltou à estalagem embriagado — e com um ferimento à bala. Morreu 30 horas depois. Pouco antes, policiais o interrogaram. “Você queria se suicidar?” O pintor soou indeciso: “Creio que sim.” Quando soube que suicídio era crime, disse apenas: “Não acusem ninguém.”
Van Gogh teria protegido seu algoz.
O próprio algoz relatou a cena nos anos 1950 numa entrevista, mas ela não teve repercussão. E é também o relato de René que sustenta boa parte da tese de assassinato do pintor, e não suicídio, defendida por Steven Naifeh e Gregory White Smith em “Van Gogh: a vida”, que a Companhia das Letras lança nesta semana no Brasil. As mais de mil páginas dedicadas ao pintor holandês pós-impressionista, que ficou conhecido pela personalidade caótica e pelas longas cartas ao dedicado irmão Theo, são fruto de dez anos de pesquisas. Daí o ar inédito de relatos quase esquecidos e resgatados agora, como o de René.
Embora não tenham um apurado poder de síntese — além das mais de mil páginas do livro, os autores criaram um site para abrigar as milhares de notas e documentos que sustentam o livro —, Naifeh e Smith têm certo know how em biografias de artistas de vidas conturbadas: em 1991, ganharam o Pulitzer com o livro “Jackson Pollock: An American saga” (ainda inédito no Brasil).
Em entrevista ao GLOBO, o advogado e historiador da arte Steven Naifeh conta como o livro foi elaborado, ataca o mito de que a produção do pintor era fruto de loucura (“Cada cor e cada pincelada em sua arte foram resultado de intenso e focado pensamento”), diz que se sente tentado a biografar Gauguin e afirma que até peritos criminais concordam com a derrocada da ideia de que Van Gogh teria se matado.
Quando e por que o senhor iniciou a pesquisa para a biografia?
Começamos o livro no ano 2000, e foram dez anos para escrever e outro ano para editar e publicar. Mas isso aconteceu porque nós dois trabalhamos seis ou sete dias por semana no livro. E teria levado muito mais tempo, se não pudéssemos digitalizar o gigantesco acervo sobre Van Gogh e organizá-lo também num arquivo digital.
O livro tem recebido boas críticas pela ampla pesquisa. Que obstáculos vocês encontraram no processo?
As mesmas coisas que fazem de Van Gogh um objeto muito atraente fazem também o livro muito difícil de ser escrito. Há tanto material histórico sobre o pintor — certamente mais do que há de qualquer outro grande artista e apenas em parte por causa das cartas enviadas a Theo — que entendemos que estávamos diante de uma oportunidade única de reconstruir a vida e o trabalho do pintor. Permitimos que as pessoas tenham quase a mesma experiência da vida de Van Gogh que ele próprio teve.
Há outras biografias confiáveis que serviram de base?
Existem muitas biografias de Van Gogh e algumas foram muito úteis. Mas, para entender o artista, tivemos que conhecer o museu de imagens que estavam em sua imaginação, assim como a vasta biblioteca de livros que ele leu e releu. Tivemos que conhecer a era em que ele viveu e todos os documentos da época, incluindo as cartas à família. Fomos os primeiros escritores fora do Museu Van Gogh a terem acesso completo a esses documentos. Nós nadamos num oceano de informações.
Observando tudo o que já foi escrito sobre o artista, quais as principais mentiras a respeito de Van Gogh?
Eu diria que o maior erro é a ideia de que sua arte é produto de loucura. Ele foi diagnosticado com epilepsia do lobo temporal. Sofria de sífilis, tinha problemas médicos. Sem dúvida, sua loucura era parte de sua vida, e sua arte era produto de sua vida. Mas sua produção era brilhantemente inteligente e completamente lúcida. Tinha episódios psicóticos, mas nunca trabalhava nesses casos. Cada cor e cada pincelada em sua arte foram resultado de intenso e focado pensamento.
Uma das críticas do “The New York Times” afirma que o livro pode nos fazer crer que o “artista era manipulador”. O senhor concorda?
Não há dúvidas de que Van Gogh era manipulador, especialmente com Theo. É difícil também não vê-lo como egoísta. Depois que Theo passou a apoiá-lo, Vincent continuou pedindo mais dinheiro, mesmo Theo apoiando também sua mãe, uma de suas irmãs, a mulher e o filho. Mas isso é apenas parte do que Van Gogh era. É ingênuo pensar que pessoas incríveis não têm falhas.
Muitos historiadores defendem que o artista se suicidou, e o Museu Van Gogh não aceita o veredicto de assassinato. O senhor acredita que ele era tão autodestrutivo?
A posição oficial do Museu Van Gogh é que “consideradas todas as informações, seria prematuro descartar suicídio como causa da morte”. Isso é razoável. Quando o livro saiu (nos Estados Unidos) a maioria dos curadores e museus com que falamos, além dos peritos criminais que nos contataram, todos concordam conosco.
Depois do Pulitzer, sentiu mais pressão nesse livro?
Absolutamente. Queríamos alguém tão perfeito para um biógrafo como Pollock. Não há muitos candidatos. Se você quer fazer uma biografia de um artista dessa escala, quer que ele tenha um bom trabalho, que tenha influenciado a arte. Quer ter informação para reconstruir tudo e não quer que ninguém tenha chegado lá antes. Van Gogh era perfeito.
Que artistas o senhor acredita que ainda carecem de ampla biografia?
Estamos tentados a escrever sobre Gauguin, mas um livro desse tipo é um investimento assustador que precisamos ter uma longa pausa antes.
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