Passamos de carro ao lado do futuro Shopping JK, na fronteira de Vila Olímpia e Itaim, e minha mulher nota uma placa do BNDES com aquele logo “Brasil – Um País de Todos”. É um empreendimento privado, de luxo, que vai trazer grandes grifes ainda inéditas no Brasil, gerando um comércio tal que sem dúvida em pouco tempo estará dando retorno. Por que, então, dinheiro público emprestado para isso? É como nos patrocínios culturais para grandes nomes do show biz nacional ou internacional, que não precisam ter a menor preocupação quanto a seu potencial de mercado. Enquanto isso, a infraestrutura urbana ao redor daquele empreendimento, como as inúmeras calçadas destruídas ou inacabadas demonstram, é ridícula. E tome desigualdade e transtorno.
O final de ano veio marcado por mortes de pessoas marcantes. O
ator Sérgio Britto, remanescente dos tempos em que o teatro brasileiro
ditava rumos culturais como jamais depois; o carnavalesco Joãosinho
Trinta, de uma ousadia que deveria ser o padrão da festa, mas quase
sempre foi a exceção; a cantora cabo-verdiana Cesaria Évora,
inesquecível com sua voz docemente triste e seus dançantes pés
descalços. E o polemista inglês Christopher Hitchens, infelizmente
lembrado mais por sua confusa adesão ao neoconservadorismo de Bush II do
que por sua corajosa crítica cultural na velha e boa linhagem
libertária, ou dissidente, dos britânicos; como já notei, ele caiu em
óbvia contradição com seu ataque às religiões, se bem que nestes também
foi confuso, como ao desprezar a cultura visual do cristianismo (que
legou, entre outras conquistas, o Renascimento).
O primeiro ano de Dilma Rousseff, como previsto, não disse a que veio. Imagino que os membros do governo durmam bem, cientes de que o índice de popularidade espelha o do emprego, como as últimas pesquisas comprovaram. A arrecadação continua subindo, apesar da desaceleração produtiva, e o investimento estrangeiro especulativo quase cobre o déficit gerado pelas importações. Logo, sendo pequenos os riscos políticos e econômicos a curto prazo, eles apostam na força inercial da cultura brasileira. E não fazem nada: nenhum programa eficiente, nenhuma reforma estrutural, nada.
Já a realidade cotidiana, que não necessariamente aparece nas intenções de voto (por que o eleitor vai trocar seis por meia dúzia, se as coisas não estão tão ruins e os políticos parecem todos iguais?), é sofrida. O custo de vida beira o absurdo. A arquitetura dos sistemas institucionais é mais desumana que a de Niemeyer, como se vê no corporativismo do Judiciário e no racismo das polícias. A insegurança e a habitação têm índices calamitosos. A corrupção corrói o dinheiro e o espírito público, impune como sempre (qual dos ministros demitidos por pressão pública serão de fato julgados e condenados?). Etc. Mas o brasileiro não desiste nunca… E nem protesta.
25.dezembro.2011 07:45:18
De presentes e ausências
Nesta época é comum ver, além das retrospectivas, os apelos
piegas ao tal espírito natalino, abusos de expressões como “renovar
esperanças”, previsões furadas de astrólogos, tarólogos e outros loucos,
textos que lamentam onde estão os natais d’antanho, mensagens de boas
festas com listas de virtudes. Meu impulso é perguntar por que as
pessoas não procuram ser assim o ano todo, e não apenas no solstício que
foi apropriado pela religião e pelo folclore para se tornar uma data
paradoxal em que se discursa sobre bons sentimentos enquanto se consome
em ritmo febril; até mesmo os nacionalistas se calam diante do fato de
que a festa não tem cara do calor de 34 graus. E então me ponho a pensar
em como generosidade e respeito, para ficar só nesses dois itens, andam
em falta nos tempos atuais, especialmente nas grandes cidades, e em
como a tecnologia que deveria nos aproximar nos tem dispersado. Mas
lembro os Natais de infância, comparo com o dos meus filhos e as
diferenças se tornam irrelevantes, porque os prazeres e as questões são
muito parecidos. E os dias deliciosamente desocupados, desacelerados,
convidam ao balanço do ano, ainda que tenha tido tantas tristezas em meu
caso, e sem balanço não há avanço.
Somos carne e pensamento, um não se dissocia do outro, e do mesmo modo o Natal é ficar feliz em dar e receber presentes, é ver as crianças alegres com o que ganham e pronto, sem místicas nem melancolias. Lembro que meu avô nos levava em seu Opala, no banco da frente, câmbio atrás do volante, para procurar o Papai Noel. Olhávamos para o céu e achávamos que qualquer luzinha era a carruagem de renas. Quando voltávamos, ele já tinha passado e deixado os presentes sob a árvore. Um primo mais velho me disse: “Cheguei até a ver a perna dele saindo pela janela”. Eu devia ter uns oito anos e achei estranho; afinal, era só ter ficado ali que com certeza o veríamos, já que eu nunca tinha conhecido ninguém que não ganhasse presentes todo santo Natal. (Eu já estava acometido desta mania de descrença: antes de fazer 6 anos, na minha primeira viagem de avião, assim que ficamos acima das nuvens perguntei ao meu pai onde estavam os “anjinhos”. Não era ali que diziam que eles moravam?) De qualquer modo, afora as comidas saborosamente calóricas, quase sempre o presente fazia a dita magia da noite. Digo “quase sempre” porque uma vez pedi um Piloto Campeão e ganhei uma Motocleta. Inconformado, reclamei: “Que Papai Noel burro!” Mas a Motocleta, espécie de triciclo evoluído, me divertiu muito mais ao descer a rampa do abacateiro na chácara que tínhamos.
Ver o sorriso de filhos e sobrinhos é boa maneira de encerrar o ano, como o fecho de capítulo de um livro que ainda não terminou, e mesmo que não chegue a redimir o capítulo ruim. Perdi minha mãe e, apesar das falas pseudo consoladoras do tipo “É a vida” (não, é a morte mesmo) e “Tudo vai ficar bem” (defina “bem”), a dor ganha intervalos, mas a ausência fica. Tive também uma decepção pessoal, que abalou minha confiança, me tirou alguns quilos, me fez ver de novo como nossos melhores esforços podem ser os mais injustiçados, como a ingenuidade é amiga da vaidade, como a efusão brasileira pode ocultar inveja ou egoísmo. Também não fico feliz ao pensar que para tantas pessoas uma experiência insubstituível como ter filhos pode ser vista como algo que “atrapalha” ou, pior, que justifica manter relacionamentos frios ou frustrantes, em vez de renová-los. Mas terminei meu capítulo com páginas encorajadoras, confiante não apenas em ter superado a fase crítica, mas também em não ter deixado o desencantamento tomar conta. Aí está, se me permitem o toque natalino: não deixar o desencanto tomar conta é o melhor presente.
Fonte: O Estado de S. Paulo
Somos carne e pensamento, um não se dissocia do outro, e do mesmo modo o Natal é ficar feliz em dar e receber presentes, é ver as crianças alegres com o que ganham e pronto, sem místicas nem melancolias. Lembro que meu avô nos levava em seu Opala, no banco da frente, câmbio atrás do volante, para procurar o Papai Noel. Olhávamos para o céu e achávamos que qualquer luzinha era a carruagem de renas. Quando voltávamos, ele já tinha passado e deixado os presentes sob a árvore. Um primo mais velho me disse: “Cheguei até a ver a perna dele saindo pela janela”. Eu devia ter uns oito anos e achei estranho; afinal, era só ter ficado ali que com certeza o veríamos, já que eu nunca tinha conhecido ninguém que não ganhasse presentes todo santo Natal. (Eu já estava acometido desta mania de descrença: antes de fazer 6 anos, na minha primeira viagem de avião, assim que ficamos acima das nuvens perguntei ao meu pai onde estavam os “anjinhos”. Não era ali que diziam que eles moravam?) De qualquer modo, afora as comidas saborosamente calóricas, quase sempre o presente fazia a dita magia da noite. Digo “quase sempre” porque uma vez pedi um Piloto Campeão e ganhei uma Motocleta. Inconformado, reclamei: “Que Papai Noel burro!” Mas a Motocleta, espécie de triciclo evoluído, me divertiu muito mais ao descer a rampa do abacateiro na chácara que tínhamos.
Ver o sorriso de filhos e sobrinhos é boa maneira de encerrar o ano, como o fecho de capítulo de um livro que ainda não terminou, e mesmo que não chegue a redimir o capítulo ruim. Perdi minha mãe e, apesar das falas pseudo consoladoras do tipo “É a vida” (não, é a morte mesmo) e “Tudo vai ficar bem” (defina “bem”), a dor ganha intervalos, mas a ausência fica. Tive também uma decepção pessoal, que abalou minha confiança, me tirou alguns quilos, me fez ver de novo como nossos melhores esforços podem ser os mais injustiçados, como a ingenuidade é amiga da vaidade, como a efusão brasileira pode ocultar inveja ou egoísmo. Também não fico feliz ao pensar que para tantas pessoas uma experiência insubstituível como ter filhos pode ser vista como algo que “atrapalha” ou, pior, que justifica manter relacionamentos frios ou frustrantes, em vez de renová-los. Mas terminei meu capítulo com páginas encorajadoras, confiante não apenas em ter superado a fase crítica, mas também em não ter deixado o desencantamento tomar conta. Aí está, se me permitem o toque natalino: não deixar o desencanto tomar conta é o melhor presente.
Fonte: O Estado de S. Paulo
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