quarta-feira, 31 de outubro de 2012

HOJE É DIA D ( FOLHA DE S. PAULO )

CADÃO VOLPATO
ESPECIAL PARA A FOLHA


Acervo Fundação Casa de Rui Barbosa
O poeta Carlos Drummond de Andrade, que completaria 110 anos nesta quarta-feira (31)
O poeta Carlos Drummond de Andrade, que completaria 110 anos nesta quarta-feira (31
 
Hoje faz 110 anos que Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) nasceu. O Instituto Moreira Salles lançou, no ano passado, o Dia D para comemorar o aniversário do poeta e difundir a sua obra. 

Este 31 de outubro de 2012 é, portanto, o segundo Dia D, e vale lembrá-lo com aquilo que o poeta escreveu: algumas das melhores linhas da literatura universal. 

Os admiradores da poesia de Drummond costumam preferir os poemas que tratam da angústia moderna, do tempo, da família ou do amor nas mais diversas idades. 

Há um poema, porém, que corre por fora. Ele foi publicado no "Diário Carioca", em 1953, e depois no livro "Fazendeiro do Ar", de 1955, com um título antiquado: "A Luís Maurício, Infante". 

Foi escrito em uma das únicas cinco viagens que o poeta fez ao exterior --todas elas para Buenos Aires, onde a filha Julieta vivia. 

Luís Maurício é o segundo neto do poeta, nascido em agosto de 1953. O poema começa assim: "Acorda, Luís Maurício. Vou te mostrar o mundo,/ se é que não preferes vê-lo de teu reino profundo". 

Como aconteceu com o primeiro neto, Carlos Manuel, Drummond estava na cidade para acompanhar o nascimento de Luís Maurício, e ali escreveu o poema. 

"Trata-se de um poema-batismo de vida, ou um poema de boas-vindas a um mundo nem tão bom assim", explica o professor, ensaísta e poeta Antonio Carlos Secchin. 

O cantor João Gilberto conhece os 72 versos de "Luís Maurício" de cor. Um dos trechos preferidos de João é aquele que diz: "Mas seja humilde tua valentia. Repara que há veludo nos ursos". 

Já o poeta Eucanaã Ferraz recita com admiração um trecho que diz: "E imagina ser pensado,/ pela erva que pensas. Imagina um elo, uma afeição surda, um passado/ articulando os bichos e suas visões". 

O infante Luís Maurício é hoje um matemático quase sexagenário que, embora tenha praticamente nascido com o poema, tem muitas histórias para contar, ouvidas em família. 

"Durante uma de suas visitas à casa de saúde onde nasci, num momento dado alguém percebeu que eu não estava no quarto: procura daqui, procura de lá, até que fui encontrado. Estava debaixo de um travesseiro sobre o qual Carlos estava sentado." 

Os três netos de Drummond costumam tratá-lo pelo primeiro nome, e o poeta usava da mesma informalidade, dando cambalhotas para agradá-los ou fazendo caretas na hora das fotografias. 

O último poema de Drummond, "Elegia a um Tucano Morto", também foi inspirado pelos netos.
Conta a história de Picasso, ave da família que vivia num sítio que precisou sofrer uma amputação, já que eles eram contrários ao sacrifício. 

Um dia, encontraram Picasso morto. "Uma ave sem a perninha é um animal desnaturalizado", disse o poeta. E isso virou uma verdade familiar.
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"A LUÍS MAURÍCIO, INFANTE"
Carlos Drummond de Andrade
Acorda, Luís Mauricio. Vou te mostrar o mundo,
se é que não preferes vê-lo de teu reino profundo. 

Despertando, Luís Mauricio, não chores mais que um tiquinho.
Se as crianças da América choram em coro, que seria, digamos, do teu vizinho? 

Que seria de ti, Luís Mauricio, pranteando mais que o necessário?
Os olhos se inflamam depressa, e do mundo o espetáculo é vário 

e pede ser visto e amado. É tão pouco, cinco sentidos.
Pois que sejam lépidos, Luís Mauricio, que sejam novos e comovidos. 

E como há tempo para viver, Luís Mauricio, podes gastá-lo à janela
que dá para a "Justicia del Trabajo", onde a imaginosa linha da hera 

tenazmente compõe seu desenho, recobrindo o que é feio, formal e triste.
Sucede que chegou a primavera, menino, e o muro já não existe. 

Admito que amo nos vegetais a carga de silêncio, Luís Mauricio.
Mas há que tentar o diálogo quando a solidão é vício. 

E agora, começa a crescer. Em poucas semanas um homem
Se manifesta na boca, nos rins, na medalhinha do nome. 

Já te vejo na proporção da cidade, dessa caminha em que dormes.
Dir-se-ia que só o anão de Harrods, hoje velho, entre garotos enormes, 

conserva o disfarce da infância, como, na sua imobilidade,
à esquina de Córdoba e Florida, só aquele velho pendido e sentado, 

de luvas e sobretudo, vê passar (é cego) o tempo que não enxergamos,
o tempo irreversível, o tempo estático, espaço vazio entre ramos. 

O tempo "" que fazer dele? Como adivinhar, Luís Mauricio,
o que cada hora traz em si de plenitude e sacrifício? 

Hás de aprender o tempo, Luís Mauricio. E há de ser tua ciência
uma tão íntima conexão de ti mesmo e tua existência, 

que ninguém suspeitará nada. E teu primeiro segredo
seja antes de alegria subterrânea que de soturno medo. 

Aprenderás muitas leis, Luís Mauricio. Mas se as esqueceres depressa,
Outras mais altas descobrirás, e é então que a vida começa, 

e recomeça, e a todo instante é outra: tudo é distinto de tudo,
e anda o silêncio, e fala o nevoento horizonte; e sabe guiar-nos o mundo. 

Pois a linguagem planta suas árvores no homem e quer vê-las cobertas
de folhas, de signos, de obscuros sentimentos, e avenidas desertas 

são apenas as que vemos sem ver, há pelo menos formigas
atarefadas, e pedras felizes ao sol, e projetos e cantigas 

que alguém um dia cantará, Luís Mauricio. Procura deslindar o canto.
Ou antes, não procures. Ele se oferecerá sob forma de pranto 

ou de riso. E te acompanhará, Luís Mauricio. E as palavras serão servas
de estranha majestade. É tudo estranho. Medita por, exemplo, as ervas, 

enquanto és pequeno e teu instinto, solerte, festivamente se aventura
até o âmago das coisas. A que veio, que pode, quanto dura 

essa discreta forma verde, entre formas? E imagina ser pensado,
pela erva que pensas. Imagina um elo, uma afeição surda, um passado 

articulando os bichos e suas visões, o mundo e seus problemas;
imagina o rei com suas angústias, o pobre com seus diademas, 

imagina uma ordem nova; ainda que uma nova desordem, não será bela?
Imagina tudo: o povo,com sua música; o passarinho, com sua donzela; 

o namorado com seu espelho mágico; a namorada, com seu mistério;
a casa, com seu calor próprio; a despedida, com seu rosto sério; 

o físico, o viajante, o afiador de facas, o italiano das sortes e seu realejo;
o poeta sempre meio complicado; o perfume nativo das coisas e seu arpejo; 

o menino que é teu irmão, e sua estouvada ciência
de olhos líquidos e azuis, feita de maliciosa inocência, 

que ora viaja enigmas extraordinários; por tua vez, a pesquisa
há de solicitar-te um dia, mensagem perturbadora na brisa. 

É preciso criar de novo, Luís Mauricio. Reinventar nagôs e latinos,
E as mais severas inscrições, e quantos ensinamentos e os modelos mais finos, 

de tal maneira a vida nos excede e temos de enfrentá-la com poderosos recursos.
Mas seja humilde tua valentia. Repara que há veludo nos ursos. 

Inconformados e prisioneiros, em Palermo, eles procuram o outro lado,
E na sua faminta inquietação, algo se liberta da jaula e seu quadrado. 

Detém-te. A grande flor do hipopótamo brota da água "" nenúfar!
E dos dejetos do rinoceronte se alimentam os pássaros. E o açúcar 

que dás na palma da mão à língua terna do cão adoça todos os animais.
Repara que autênticos, que fiéis a um estatuto sereno, e como são naturais. 

É meio-dia, Luís Maurício, hora belíssima entre todas,
pois, unindo e separando os crepúsculos, à sua luz se consumam as bodas 

do vivo com o que já viveu ou vai viver, e a seu puríssimo raio
entre repuxos, os "chicos" e as "palomas" confraternizam na "Plaza de Mayo". 

Aqui me despeço e tenho por plenamente ensinado o teu ofício,
que de ti mesmo e em púrpura o aprendeste ao nascer, meu netinho Luís Mauricio. 


CADÃO VOLPATO é músico, jornalista e escritor, autor de "Relógio Sem Sol" (ed. Iluminuras), entre outros 

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