O acaso de uma viagem leva-me a abrir e a examinar o livro Todas as
Palavras (Assírio & Alvim, 2012), poesia reunida do português Manuel
António Pina, nascido em 1943, e ainda pouco conhecido no Brasil.
Embora bem recebidas regionalmente, suas sucessivas coleções de poemas
circulavam apenas entre os "happy few". Era tido como autor de livros
infantojuvenis e jornalista político. A produção poética ganhou destaque
internacional na edição 2011 do Prêmio Camões. Os jurados a elegeram.
Ao receber o prêmio, o poeta engendra trocadilho que tem graça e faz
sentido: "É a coisa mais inesperada que poderia esperar". Nuno Ramos de
Almeida diz que ele "não acredita em milagres, mas faz tudo para que
eles aconteçam".
Com resultado nulo ou inesperado, a reflexão durante a espera foi
tema na literatura do desconcertante século 20, quando as certezas se
esboroaram no chão da dúvida e da decepção. Haja vista a primazia
conferida à peça Esperando Godot, de Samuel Beckett, e o sentido da
expectativa masoquista exposto por Albert Camus, o Sísifo. Na sala de
espera do dentista, o paciente aguarda a vez e a dor simbólica. Leia-se
no romance A Peste: "Pergunta: O que fazer para não perder tempo –
Resposta: Experimentá-lo em toda sua extensão. Meios: Passar dias na
sala de espera do dentista, sentado de maneira desconfortável".
Como lugar dramático, a sala de espera incita o artista – não
comprometido com a ação política – à observação da fragilidade e da
precariedade do esforço humano, que lhe causam angústia existencial.
Compele-o ao imperioso ceticismo frente ao homem e ao mundo.
Circunstâncias dão origem a valores transitórios e a crença nestes é
vista como traição ao compromisso fundador do artista e do intelectual
modernos.
Manuel António Pina sabe que, ao usar a palavra como ferramenta
expressiva, o poeta escreve – na hesitação entre som e sentido, para
retomar Paul Valéry – o verso que levanta potencialidades de significado
e se robustece de novas e outras indeterminações. No poema, dobra-se o
mundo "entre ser e possibilidade". Se entrevistado sobre a construção do
real pela poesia, António Pina arrasta o curioso até a antessala do
conhecimento para que reflita sobre a ambivalência de significado na
vida real, dando como exemplo o experimento científico conhecido como o
gato de Schrödinger. Fechado numa caixa e à mercê duma ampola de veneno,
que pode ou não ter sido quebrada, o gato está momentaneamente vivo e
morto. Aberta a caixa e observado o conteúdo, vai-se a ambiguidade: o
gato vive ou está morto. Ao se ganhar o sentido do real, colapsa-se a
esperança de o bichano estar vivo e morto. Perde-se o indecidível, para
citar Jacques Derrida.
O cientista acondiciona o gato numa caixa ardilosa. O poeta aprisiona
a palavra num poema. O potencial assassino da ampola de veneno em
relação ao gato, assim como o potencial explosivo da palavra poética
frente ao real, tem mera função aleatória. Afirma António Pina: "Nunca
saberemos como é o mundo real, e até que ponto ele coincide com aquele
que construímos através da observação e com recurso à linguagem". E
continua: "Nós é que construímos de fato a realidade através da
observação, nós é que lhe damos sentido".
A congruência da palavra poética com as coisas – a harmonia do que é
morto com o que é vivo – é metaforizada por António Pina pelo par de
meias (a não ser confundido com o não coincidente par de sapatos). O
poeta cita uma passagem da Mineralogia e Geologia Gerais: "Como exemplo
de congruência / podemos tomar um par de meias / que tanto se pode
calçar no pé / esquerdo como no pé direito". É do par de meias – e das
palavras no poema – o direito ao paradoxo de Schröndinger e à
congruência. Já cada sapato calça seu próprio pé.
O milagre da poesia consiste em fazer com que, fora da caixa, se
perpetue o estado indecidível da palavra dentro dela. Após a observação
do poeta e a decisão do poema, a palavra poética ainda se robustece como
indeterminação explosiva, semelhante à proposta pela relação entre gato
e ampola em Shrödinger. Antes de ser sentido, ela é sílaba, plenitude, e
silêncio, vazio. Em "os tempos não", poema que abre a poesia reunida,
lemos: "As palavras esmagam-se entre o silêncio / que as cerca e o
silêncio que transportam". Não é pela semântica das palavras, é pelo seu
"hálito" que o poeta constrói o verso. No poema "O livro", lemos: "O
que o livro diz é não dito / como uma paisagem entrando pela janela de
um quarto vazio". Em "Arte poética", complementa: "Vai pois, poema,
procura / a voz literal / que desocultadamente fala / sob tanta
literatura. / Se a escutares, porém, tapa os ouvidos, porque pela
primeira vez estás sozinho".
Tecido em palavras poéticas, o "par de meias" (leia-se: a vida) calça
indistintamente o princípio e o fim do homem. Nascimento e morte se
harmonizam. Não há milagre, mas é preciso se esforçar para que ele
aconteça. Tal atitude é inspirada a António Pina por T. S. Eliot, cujos
versos sobre o esforço de o poeta tornar a incongruência congruente são
citados: "chegar aonde começamos / e conhecer o lugar pela primeira
vez". O par de meias de Eliot está também nos versos do próprio António
Pina, que, aliás, são recorrentes: "O rio da morte corre para a
nascente", ou: "Voltamos sempre ao princípio, estamos perdidos!". Manuel
ainda se inspira em texto bíblico para escrever outros e muitos poemas:
"Aquele que quer morrer / é aquele que quer conservar a vida".
A hesitação entre a palavra e o real. A ressurreição do gato, a
afirmar e a negar a observação. A incerteza sobre o caminhar da vida na
morte. As três damas regulam o imperioso ceticismo na poesia de António
Pina, dada como "falta", falta que é construída a partir do verso "O
braço que falta ao mendigo é que o sustenta". Para culminar: "É o que
falta que fala".
Silviano Santiago para o caderno SABÁTICO do jornal O ESTADO DE S. PAULO.
CRÔNICA INÉDITA: AS RAPOSAS E O GALINHEIRO
http://profclaudiosilva.blogspot.com.br/2012/09/as-raposas-e-o-galinheiro-refletindo.html
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