quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Entre a palavra e o real ( SILVIANO SANTIAGO)



O acaso de uma viagem leva-me a abrir e a examinar o livro Todas as Palavras (Assírio & Alvim, 2012), poesia reunida do português Manuel António Pina, nascido em 1943, e ainda pouco conhecido no Brasil. Embora bem recebidas regionalmente, suas sucessivas coleções de poemas circulavam apenas entre os "happy few". Era tido como autor de livros infantojuvenis e jornalista político. A produção poética ganhou destaque internacional na edição 2011 do Prêmio Camões. Os jurados a elegeram. Ao receber o prêmio, o poeta engendra trocadilho que tem graça e faz sentido: "É a coisa mais inesperada que poderia esperar". Nuno Ramos de Almeida diz que ele "não acredita em milagres, mas faz tudo para que eles aconteçam". 

Com resultado nulo ou inesperado, a reflexão durante a espera foi tema na literatura do desconcertante século 20, quando as certezas se esboroaram no chão da dúvida e da decepção. Haja vista a primazia conferida à peça Esperando Godot, de Samuel Beckett, e o sentido da expectativa masoquista exposto por Albert Camus, o Sísifo. Na sala de espera do dentista, o paciente aguarda a vez e a dor simbólica. Leia-se no romance A Peste: "Pergunta: O que fazer para não perder tempo – Resposta: Experimentá-lo em toda sua extensão. Meios: Passar dias na sala de espera do dentista, sentado de maneira desconfortável".

Como lugar dramático, a sala de espera incita o artista – não comprometido com a ação política – à observação da fragilidade e da precariedade do esforço humano, que lhe causam angústia existencial. Compele-o ao imperioso ceticismo frente ao homem e ao mundo. Circunstâncias dão origem a valores transitórios e a crença nestes é vista como traição ao compromisso fundador do artista e do intelectual modernos.

Manuel António Pina sabe que, ao usar a palavra como ferramenta expressiva, o poeta escreve – na hesitação entre som e sentido, para retomar Paul Valéry – o verso que levanta potencialidades de significado e se robustece de novas e outras indeterminações. No poema, dobra-se o mundo "entre ser e possibilidade". Se entrevistado sobre a construção do real pela poesia, António Pina arrasta o curioso até a antessala do conhecimento para que reflita sobre a ambivalência de significado na vida real, dando como exemplo o experimento científico conhecido como o gato de Schrödinger. Fechado numa caixa e à mercê duma ampola de veneno, que pode ou não ter sido quebrada, o gato está momentaneamente vivo e morto. Aberta a caixa e observado o conteúdo, vai-se a ambiguidade: o gato vive ou está morto. Ao se ganhar o sentido do real, colapsa-se a esperança de o bichano estar vivo e morto. Perde-se o indecidível, para citar Jacques Derrida.

O cientista acondiciona o gato numa caixa ardilosa. O poeta aprisiona a palavra num poema. O potencial assassino da ampola de veneno em relação ao gato, assim como o potencial explosivo da palavra poética frente ao real, tem mera função aleatória. Afirma António Pina: "Nunca saberemos como é o mundo real, e até que ponto ele coincide com aquele que construímos através da observação e com recurso à linguagem". E continua: "Nós é que construímos de fato a realidade através da observação, nós é que lhe damos sentido".

A congruência da palavra poética com as coisas – a harmonia do que é morto com o que é vivo – é metaforizada por António Pina pelo par de meias (a não ser confundido com o não coincidente par de sapatos). O poeta cita uma passagem da Mineralogia e Geologia Gerais: "Como exemplo de congruência / podemos tomar um par de meias / que tanto se pode calçar no pé / esquerdo como no pé direito". É do par de meias – e das palavras no poema – o direito ao paradoxo de Schröndinger e à congruência. Já cada sapato calça seu próprio pé.

O milagre da poesia consiste em fazer com que, fora da caixa, se perpetue o estado indecidível da palavra dentro dela. Após a observação do poeta e a decisão do poema, a palavra poética ainda se robustece como indeterminação explosiva, semelhante à proposta pela relação entre gato e ampola em Shrödinger. Antes de ser sentido, ela é sílaba, plenitude, e silêncio, vazio. Em "os tempos não", poema que abre a poesia reunida, lemos: "As palavras esmagam-se entre o silêncio / que as cerca e o silêncio que transportam". Não é pela semântica das palavras, é pelo seu "hálito" que o poeta constrói o verso. No poema "O livro", lemos: "O que o livro diz é não dito / como uma paisagem entrando pela janela de um quarto vazio". Em "Arte poética", complementa: "Vai pois, poema, procura / a voz literal / que desocultadamente fala / sob tanta literatura. / Se a escutares, porém, tapa os ouvidos, porque pela primeira vez estás sozinho".

Tecido em palavras poéticas, o "par de meias" (leia-se: a vida) calça indistintamente o princípio e o fim do homem. Nascimento e morte se harmonizam. Não há milagre, mas é preciso se esforçar para que ele aconteça. Tal atitude é inspirada a António Pina por T. S. Eliot, cujos versos sobre o esforço de o poeta tornar a incongruência congruente são citados: "chegar aonde começamos / e conhecer o lugar pela primeira vez". O par de meias de Eliot está também nos versos do próprio António Pina, que, aliás, são recorrentes: "O rio da morte corre para a nascente", ou: "Voltamos sempre ao princípio, estamos perdidos!". Manuel ainda se inspira em texto bíblico para escrever outros e muitos poemas: "Aquele que quer morrer / é aquele que quer conservar a vida".

A hesitação entre a palavra e o real. A ressurreição do gato, a afirmar e a negar a observação. A incerteza sobre o caminhar da vida na morte. As três damas regulam o imperioso ceticismo na poesia de António Pina, dada como "falta", falta que é construída a partir do verso "O braço que falta ao mendigo é que o sustenta". Para culminar: "É o que falta que fala".

Silviano Santiago para o  caderno SABÁTICO do jornal O ESTADO DE S. PAULO.

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