O Estado de S.Paulo
ANTONIO GONÇALVES FILHO
A ambição literária do espanhol Javier Marías é grande o suficiente
para que ele se coloque no lugar de uma mulher e fale de amor. Nenhum
homem, em sã consciência, estaria disposto a abdicar de sua condição
para encarar sua persona feminina - e não estamos falando de
crossdressers. Marías, 61 anos completados quinta-feira, topou o
desafio. Os Enamoramentos não exigiu dele o esforço da trilogia Seu
Rosto Amanhã, o que teria representado para o autor um nocaute literário
após esse exaustivo trabalho, mas é um livro igualmente complexo sobre
sentimentos e questões existenciais, feito para marcar seus 41 anos de
carreira, nos quais publicou 13 romances. O livro foi grandioso êxito
editorial na Espanha, tendo vendido algo em torno de 100 mil exemplares
nos seis meses seguintes ao lançamento (em abril de 2011). No Brasil,
ele sai em dobradinha com O Coronel Chabert, de Balzac, citado várias
vezes em Os Enamoramentos.
Trata-se de um livro sobre o amor, mas não de um livro amoroso. Nele,
os dilemas morais por trás de uma paixão interessam mais que os
relacionamentos. São as consequências desse envolvimento que importam, e
Marías reflete sobre como a fantasia pode conduzir alguém a um mundo
assustadoramente real, além de imaginar o que poderia acontecer se um
morto voltasse para interferir na vida daqueles que ficaram. O
desaparecido, no caso, chama-se Miguel Desvern, ou Deverne, um burguês
bem casado com Luísa e sempre vestido de terno, camisa com abotoadura e
sapatos de cadarço. A protagonista da história é María Dolz, que admira -
ou inveja à distância - a felicidade do casal, visto por ela todos os
dias numa cafeteria, antes de começar a jornada de trabalho. María,
condenada ao papel de narradora dessa história, trabalha numa editora,
mas não tem lá boa impressão dos escritores, aos quais reserva adjetivos
nada edificantes. Sobre Os Enamoramentos, Javier Marías, apontado com
sério candidato ao Nobel, falou ao Sabático na entrevista a seguir.
Pela primeira vez em sua carreira o senhor recorre a uma narradora feminina para falar em primeira pessoa. Por que razão?
Desde 1986, todos os meus romances são em primeira pessoa e prefiro
essa forma por várias razões. Em Os Enamoramentos, a história teria que
se passar com uma mulher: se você imaginar os personagens com sexo
invertido, verá que nada seria verossímil. Assim, surgiu a dúvida se eu
deveria escrever na terceira pessoa ou adotar uma voz feminina na
primeira pessoa pela primeira vez num romance. Optei pela segunda
alternativa, pois a primeira pessoa sempre me parece a mais persuasiva
para narrar - ao menos nos tempos que correm. A princípio, me senti um
pouco tímido com essa voz de mulher, até concluir que as diferenças
entre mulheres e homens são muitas, mas não estão na cabeça. Um narrador
conta, observa e reflete e, ao fazer essas três coisas, nós, homens e
mulheres, não nos diferenciamos, ou não mais que homens se diferenciam
de outros homens e mulheres, de outras mulheres. Finalmente, me acomodei
a essa voz e não recebi muitas queixas das leitoras.
Os Enamoramentos é sobre o amor, mas não traz uma visão positiva das
relações amorosas, defendendo que o amor é pura questão de sorte. O
senhor não acredita que possa existir algo misterioso no encontro de
duas pessoas?
Pode e não pode. O absurdo é pensar que todas as histórias amorosas
acontecem por uma espécie de predestinação. Elegemos entre os que temos à
mão; em primeiro lugar, elegemos e somos eleitos; dependemos muito de
onde vivemos, de nossa classe social, até da nossa língua. Na maioria
das vezes, não há nada de misterioso nem de mágico no estabelecimento de
um casal, senão muito de conformismo. Se alguém prefere acreditar em
outra coisa, para tornar esse sentimento mais nobre, está no seu
direito, mas não devemos nos enganar. Dependemos de quem esteja
disponível, para começar, e de quem se fixe em nós com bons olhos.
Com esse livro, o senhor comemorou 41 anos de literatura. Como
encaixaria Os Enamoramentos dentro dessa história literária? Seria seu
romance mais ambicioso, considerando as inúmeras referências a Balzac,
que fez até com que sua editora brasileira fizesse uma edição dupla com O
Coronel Chabert?
Tinha 19 anos quando escrevi meu primeiro livro. Não sei o que dizer.
No meio tem toda uma vida. É normal que minha literatura tenha mudado
como a pessoa que sou hoje. Não sei analisar meus livros e tampouco os
releio. Há uma semana, em Londres, tive de ler em público fragmentos de
Um Coração Tão Branco, que saiu há 20 anos. Gostei, mas confesso: não os
reconheci como meus - em inglês, menos ainda. Em minha opinião, que não
tem importância, meu livro mais ambicioso é o anterior, Seu Rosto
Amanhã, ainda que seja só por sua extensão e porque dediquei oito anos
de minha vida aos três volumes. Quanto a Balzac e seu livro, não há nada
de metaliterário na sua inclusão em Os Enamoramentos. Simplesmente seus
personagens o leem, como faz muita gente na vida, e falam de um texto
que leram e que, além de tudo, é conveniente para justificar seus atos.
Minha intenção não era fazer um exercício metaliterário. Apenas o livro
de Balzac se encaixa muito bem na história.
Há temas que aparecem com relativa frequência em suas obras e também
são importantes a dois autores que já mereceram um livro seu - Faulkner e
Nabokov: Dos Maestros. Parece-me que essa repetição é uma forma de
refletir melhor sobre eles, mas como explica essa revisitação?
Quase todos os autores, sejam eles escritores ou cineastas, voltam
sempre aos mesmos temas. Com Hitchcock, Orson Welles, John Ford,
Shakespeare ou Dickens aconteceu o mesmo. Pouco a pouco foram se fixando
no que mais lhes interessava. Meus temas principais dizem respeito a
sentimentos comuns a muitas pessoas: traição, segredo, persuasão,
suspeita, impossibilidade de conhecer qualquer coisa com segurança,
mesmo nossa própria vida, que está cheia de sombras.
A mais forte impressão que alguém pode ter após a leitura de Os
Enamoramentos é de que todos somos substitutos de um amor impossível, um
amor que ficou no passado e se perdeu no tempo. Não é um pouco cínico
encarar os outros como substitutos de alguém?
Sim, um pouco cínico. Muitos se julgam únicos e entram de boa fé numa
relação, mas é fácil descobrir a posteriori que em parte - só em parte -
substituem a um outro que perdemos e que também nós somos substitutos
parciais dos demais. Se alguém aceita ser isso, não há tanto cinismo em
aceitar que ninguém, a partir de uma certa idade, é totalmente original.
Temos uma tendência a ver paralelismos, repetições e semelhanças nas
situações amorosas. Estas não são tão variadas no conjunto, a ponto de
não se ver ou sentir isso.
O senhor sempre cita uma frase de Faulkner que compara a literatura a
um fósforo aceso no campo no meio da noite, que não ilumina nada, mas
acena com uma esperança. É possível que a literatura tenha uma dimensão
tão ínfima?
Sim, é nisso que acredito. Faulkner dizia que a pequena chama acesa
no meio da noite escura só serve para ver com mais claridade quanta
escuridão existe ao redor dela. A literatura faz isso, mas não me parece
pouco. Ilumina zonas de sombra ou penumbra e sem ela as pessoas nem se
dariam conta de que essas zonas existem. Não explica o mistério, mas nos
ajuda a dar conta de sua magnitude. Se não houvesse a literatura, nem
sequer saberíamos a dimensão do desconhecido, do enigmático do mundo, do
inexplicável de nossos comportamentos. É pouco e é muito. A ciência faz
algo parecido, no fundo. Acreditamos que ela ilumina, mas sobretudo ela
nos mostra zonas de sombra. Temo que essas nunca acabem.
O senhor é referência na literatura contemporânea mundial e vários
críticos o apontam como nome provável para o Nobel. O que pensa sobre a
nova literatura espanhola e o Nobel?
Não me vejo como referência. No conjunto do romance espanhol me
consideraram sempre como alguém que nem sequer era espanhol, ou pelo
menos assim me disseram muitos críticos e colegas. O establishment
literário de meu país me ignorou durante décadas. Assim, nem me pergunte
sobre o romance espanhol; aparentemente, nem sou parte dele. Quanto ao
Nobel, não creio que exista uma base real para pensar que eu seja ou
possa ser candidato. Agradeço a quem o solicita para mim na Inglaterra,
Alemanha, EUA. São muito amáveis, mas não creio que esse desejo tenha a
ver com a realidade. Entre outras razões, porque a Suécia foi um dos
últimos países europeus que me traduziu - e pouco.
A narradora do seu livro trabalha numa editora e tem péssima
impressão de escritores. Em que medida ela se confunde com o autor? Os
Enamoramentos é resposta ao esteticismo vazio de parte da literatura
atual?
As breves passagens em que a narradora fala de escritores e editores
são para caracterizar a personagem, que trabalha numa editora. Algumas
histórias anedóticas que relata têm a ver com casos reais, que conheço,
outras são inventadas. De qualquer modo, é normal que quem trabalhe em
contato com escritores não tenha muito boa impressão deles. Somos quase
sempre caprichosos e vaidosos. Alguns, e não me incluo entre eles, são
megalomaníacos insuportáveis e só pensam em dinheiro. Também há -
poucos, segundo minha experiência - os que são pessoas estupendas e
nobres. Atrevo-me a dizer que os piores e os melhores indivíduos que
conheci eram escritores.
Após a trilogia Seu Rosto Amanhã, o senhor disse que abandonaria a
literatura e agora volta com um volume de quase 400 páginas. Pretende
escrever outra trilogia?
É quase certo que não. Foi um enorme esforço em todos os sentidos e
não creio ter mais energia para cometer algo semelhante no futuro. Além
do mais, quando terminei essa trilogia de 1.600 páginas, tive a
impressão de que não escreveria mais livros. Isso não significa que Os
Enamoramentos não possa ser superior a Seu Rosto Amanhã. Nós,
escritores, conhecemos pouco os resultados daquilo que fazemos. Veja o
exemplo de Joseph Conrad, um dos meus ídolos, que escreveu longos e bons
romances e é lembrado por O Coração das Trevas, que tem menos de 200
páginas. Algo semelhante aconteceu com Henry James e A Outra Volta do
Parafuso. Ninguém tem controle sobre o que o outro vai decidir lembrar,
se é que terá a sorte de ser lembrado.
Como o senhor vê a situação atual da Espanha?
A situação é péssima e ficou pior depois que o Partido Popular se fez
maioria e governa à base de decreto-lei, sem consultar ou fazer pactos
com ninguém. O anterior governo socialista foi mal, mas o atual é pior.
Todas as suas reformas são para proteger a Igreja, os empresários, os
bancos e endinheirados. Estão acabando com a saúde e a educação pública,
com a cultura, com a ajuda as necessitados, rebaixando os salários dos
funcionários, alimentando o desemprego e aumentando os impostos das
classes média e trabalhadora, mas não dos mais ricos. Os "indignados"
seguem protestando, mas seu movimento perdeu força por não se organizar
num partido político. Seguramente, nenhum governo poderia nos tirar
dessa situação econômica de imediato, mas há maneiras e maneiras de
amenizá-la. As do PP são desastrosas.
"Quase todos
os escritores
voltam aos
mesmos temas"
Fonte: O ESTADO DE S.PAULO- 22.09.2012, s3
CRÔNICA
INÉDITA: AS RAPOSAS E O GALINHEIRO
http://profclaudiosilva.blogspot.com.br/2012/09/as-raposas-e-o-galinheiro-refletindo.html
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