A professora Marcele Kloper (em pé, à esquerda) ao lado de Joelma de
Lima, mãe de Felipe e Camila, alunos da rede pública em São Gonçalo
Rafael Andrade / O Globo
RIO e RECIFE - O aluno não aprende porque os pais não o acompanham?
Para 88% dos professores do nível fundamental da rede pública no país,
sim. Quase 81% também acreditam que um aluno não vai bem na escola
porque não se esforça. Os dados fazem parte de um levantamento feito
pelo Movimento Todos Pela Educação em respostas dadas por professores da
rede pública na Prova Brasil, do Inep. E levantam a questão: num
sistema educacional público com má remuneração para o magistério e
escolas mal equipadas, que recebem estudantes em que a própria família
já tem, em geral, baixa escolaridade e frágil nível cultural, de quem é a
culpa pelo mau aluno?
No Questionário do Professor da Prova
Brasil de 2009, os professores receberam uma lista de possíveis causas
para problemas de aprendizagem dos estudantes, para dizer com quais
causas mais concordavam. Quase todos concordaram com as respostas "Falta
de assistência e acompanhamento da família nos deveres de casa e
pesquisas do aluno" e "Desinteresse e falta de esforço do aluno".
Respostas que poderiam mostrar a responsabilidade do professor ou da
escola — "Baixo salário dos professores, que gera insatisfação e
desestímulo para a atividade docente" e "Escola oferece poucas
oportunidades de desenvolvimento do aluno" — tiveram 30,5% e 27,4%,
respectivamente.
— Como a educação depende de vários setores, é
esperado que um jogue a responsabilidade para o outro. Se você for
perguntar para muitos pais, eles vão dizer que a escola não ensina
direito. Mas, apesar de esperada essa responsabilização do outro, é
preocupante que o professor coloque a culpa na família, se pensarmos
que, nas escolas públicas, em diversas vezes não lidamos com crianças
imersas no mundo letrado. Jogar a culpa para a família, nesses casos, é o
professor falar "não consigo lutar contra isso". Nesse tipo de
realidade, a função da escola pública é essa mesmo, é exercer um papel
que a família e o meio em que o aluno vive não estão conseguindo
cumprir. O contrário seria condenar a criança pobre a não aprender —
analisa Priscila Cruz, diretora-executiva do Todos Pela Educação.
Novas formas de participação
Se
a família não consegue acompanhar a educação do aluno, diz Priscila, o
papel da escola seria achar maneiras de estimular esse acompanhamento.
—
Não podemos partir da suposição de que a família não apoia porque não
quer. Às vezes é porque não sabe mesmo, em muitos casos os pais
estudaram menos do que o filho. Além disso, a escola reclama que os pais
não vão às reuniões, mas as marca na terça às 9h. A classe trabalhadora
trabalha na terça às 9h — destaca Priscila, para quem o baixo número de
respostas de professores colocando a responsabilidade no nível salarial
e no desestímulo que isso provoca também era esperado. — Seria até
antiético, eles estariam admitindo que dão uma aula ruim.
Em áreas
com indicadores sociais críticos, como Norte e Nordeste, a falta de
acompanhamento da família às vezes tem a ver com problemas como o
analfabetismo. Ramone Maria do Nascimento, do bairro de Afogados, em
Recife, tem duas filhas na escola, Vanessa e Vandressa, alunas do
colégio municipal Mércia Albuquerque. A mãe não sabe sequer escrever o
nome todo:
— Vanessa precisou de muita ajuda na escola. Pedia às colegas para ensinar, pois não sei ler.
Vanessa, de 11 anos, escreve com desenvoltura, mas não sabe pontuar. Não leu um só livro em 2011 ou este ano.
Na
casa de Cássia Cristina da Silva, no mesmo bairro, são quatro os filhos
na escola. Com pai pedreiro com pouco estudo e ela analfabeta, as
crianças só não tiveram mais dificuldades porque os pais pagaram
reforço.
— Hoje um reforço aqui no bairro está entre R$ 35 e R$ 45
por aluno. A gente não pode mais — reclama Cássia, que este ano
comemorou o fato de a filha Cassiana ter conseguido um colégio com tempo
integral.
No Mércia Albuquerque, a diretora Maria José Moura acha que atribuir culpa aos pais ou alunos é raciocínio distorcido:
—
São vários fatores em comunidades como esta, com histórico de
violência. A maioria dos alunos não tem pai. Outros estão com o pai
preso ou envolvido com o tráfico. A comunidade não tem banheiro. Muitos
alunos passavam muito tempo no banheiro, e descobri que era para
aproveitarem o chuveiro, a torneira, que não têm em casa.
Mudar a forma de participação da família parece ser a saída, afirmam pesquisadores.
—
Nas séries iniciais, acredito que a responsabilidade maior pela
educação da criança seja da escola, porque são alunos mais interessados.
A partir da adolescência, o interesse da família em acompanhar ganha
peso maior. Agora, é mais fácil culpar os pais, quando a leitura correta
é: como a escola pode mudar para conquistar esses pais? — diz João
Batista Oliveira, presidente do Instituto Alfa e Beto. — A escola trata o
pai mal, só fala mal do filho. O pai não volta a segunda vez. Quando a
escola poderia, em vez disso, falar sobre o que o filho tem de bom. Se o
aluno picha, como converter aquilo num trabalho com artes, por exemplo.
Em vez de chamar o pai só para reuniões, chamá-lo para falar de cursos
para esse pai.
— A família de aluno de rede pública em geral
participa pouco. O problema são as condições de participação, que afetam
a qualidade dela. A escola tem de melhorá-las — afirma Daniel Cara,
coordenador da Campanha Nacional pelo Direito à Educação. — Estudos
mostram que o chamado efeito-família tem peso similar no aprendizado ao
do efeito-escola. Mas, no Brasil, o efeito-família tem um obstáculo, a
baixa escolaridade de boa parte das famílias. Aí, a escola é que tem de
ser a diferença.
No bairro Jockey, em São Gonçalo, Região
Metropolitana do Rio, o modo que a Escola Estadual Professora Odyssea
Silveira de Siqueira encontrou para atrair a família foi, além das
tradicionais reuniões de pais, chamar para palestras sobre temas como
drogas e gravidez; e para comemorações como desfiles ou o aniversário da
escola. No início de 2011, quando o colégio ficou sem diretor por
alguns meses, pais de alunos chegaram a se reunir para ajudar na limpeza
e na manutenção do espaço.
— Não adianta a escola ser bilíngue se
a família não mostra ao filho o valor de ter um projeto de vida. E a
escola, em regiões como a nossa, precisa também educar os pais para isso
— diz a professora de Ciências Marcele Kloper Balado, coordenadora do
projeto Os Pais na Escola, criado há um ano no Odyssea.
— Chamar o
pai só para reclamar do filho não funciona. Tem de saber como chamar
esse pai — acrescenta o diretor do colégio, Carlos José Pestana Moreira,
destacando a melhora dos resultados da escola nas provas do Saerj em
2011, ficando acima das notas médias do estado.
Quando o filho explica o dever
Mãe
de dois alunos do Odyssea, a dona de casa Joelma de Lima, que estudou
até a antiga 3 série primária, diz que aprendeu a fazer o casal de
filhos explicar para ela o dever de casa:
— Explicaram raiz
quadrada, que para mim era coisa do outro mundo, e uma coisa de ciência
que gostei muito, sobre evolução do ser humano. Se deixar as criança por
ela mesma, ainda mais a mais velha, não vai estudar como deveria — diz
Joelma, concordando que não há pai ou mãe que goste de só ouvir falarem
mal do filho. — Fico mais tranquila, porque não chamam só nesses
momentos.
A resposta "Carência de infraestrutura física e
pedagógica da escola" recebeu apenas 28% da concordância dos professores
no levantamento da Prova Brasil. Mas, para Danilo Serafim, professor de
Sociologia da rede estadual do Rio e coordenador geral do Sindicato dos
Professores do Estado do Rio (Sepe), esse é um dos principais itens que
demonstram que o culpado não é nem o pai nem o professor:
— É o
sistema educacional. As políticas educacionais, que não põem contraturno
nas escolas, laboratórios... Estive numa escola de Valença
recentemente, e, quando chove, o professor tem de levar os alunos para o
banheiro, o único lugar onde não chove lá dentro. É claro que há
diferença do aluno de uma família que participa para um que tem família
ausente. Mas estou perplexo com o fato de a maioria dos professores ter
respondido que a causa está nos pais. Se o professor ficar apontando
dedo para a família, e a família, para o professor, os reais
responsáveis só vão ficar assistindo a isso de camarote.
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